Partimos de Santa Maria RS na madrugada do dia 14 de janeiro de 2019 para começar a nossa temporada Andina de 2019. Chegamos em Mendoza no segundo dia de viagem passado das 20 horas, e tão logo tratamos de localizar o endereço do quarto em uma casa pelo Airbnb. Lá nos esperava nosso amigo e cliente dessa expedição, o Ediceu Pereira, que é de São Paulo e também viciado em montanhas. Juntamente com o Ediceu, veio nos receber o nosso anfitrião, o Martin, morador da casa e a sua namorada. Não poderia deixar de mencionar a nossa anfitriã, a Lobita, uma dócil cachorrinha preta de olhos azuis, que logo percebeu que gostávamos de bichos.
Após organizar as tralhas no dormitório, fomos para a frente da casa tomar um chimarrão e colocar a conversa em dia. Era tanto assunto que nos prolongamos acordados até por volta da meia noite. Nos obrigamos a nos recolher para dormir para não perturbar o sono dos nossos anfitriões.
Fez uma temperatura bem fresca durante a madrugada, o que garantiu um sono reparador. Levantamos às 7 horas para organizar os equipamentos, pois naquela manhã ainda iríamos ao supermercado para comprar mantimentos para nossa expedição ao Cerro Mercedário. Martin também levantou cedo. Ele gentilmente preparou torradas na chapa, chás (chá argentino é tudo de bom), biscoitos, queijo, manteiga e geleia para o nosso desjejum. E ainda presenteou o Tiago com um pacote de erva-mate argentina.
Depois nos despedimos de nossos hospedadores e partimos para o supermercado, onde compramos dois quilos de bife de chorizo para assar na base da montanha. Perguntamos para o Ediceu quanto de carne ele comeria e a resposta foi: “Um pouco. Mas tem que ser bem passado. Não gosto de carne mal passada” (queridos leitores, guardem essas palavras de nosso amigo). E por volta de meio dia deixamos Mendoza e partimos para Barreal, onde encontraríamos o Pedro Abrão. Almoçamos algum lanche mesmo dentro do carro.
Chegando na pequena cidade (que depois descobrimos ser um distrito da cidade de Calingasta na província de San Juan), encontramos o Pedro na entrada de um camping, juntamente com a namorada, a Maressa, e um casal de amigos, a Micaela e o Felipe. Todos eles de São Paulo, exceto o Pedro, que é de Maringá PR, mas que por conta dos mestrado (e agora doutorado) erradicou-se para SP.
O quarteto havia realizado a ascensão ao Cerro Plata alguns dias antes, e pretendiam escalar o Cerro Mercedário em tempo menor que o nosso, já que estavam previamente aclimatados. Nós, recém chegados, teríamos que fazer todo o processo de aclimatação ainda. Além disso, a Maressa decidiu não nos acompanhar nessa nossa jornada e aguardar ali no camping, o que reforçava a vontade do Pedro em retornar o quanto antes.
Chegamos no refúgio Laguna Blanca, a base do Cerro Mercedario, por volta das 17 horas. Para a nossa surpresa, havia mais quatro carros ali estacionados, sendo dois com placas brasileiras e ainda do Rio Grande do Sul! Organizamos nossos isolantes térmicos em um “dormitório” daquele refúgio abandonado para pernoitar ali. Ficamos conversando e confraternizando no que um dia fora uma cozinha. E depois de algumas térmicas de mate, o Tiago fez um fogo de chão para assar nossos bifes de chorizo e alguns pimentões. Nisso, chegou uma turma de quatro argentinos, que estavam voltando de uma aclimatação. Eles também fizeram um assado ali na base e compartilharam conosco tomates e limões.
Momento mais aguardado: churrasco pronto. Aproveitamos e nos deliciamos com aquela carne macia, uma vez que no Brasil não existe carne tão macia e saborosa quanto essa. Nesse momento, o Ediceu já estava comendo carne mal passada e achando a oitava maravilha do mundo, o que também acho que é. Depois de nosso merecido jantar dos deuses, nos ajeitamos para dormir. Era preciso descansar para o dia seguinte, quando começaríamos a escalar a montanha.
Ainda era bastante cedo quando acordamos. Fomos para a “cozinha” para tomar o café da manhã para depois começar a organizar as mochilas para subir. O Pedro, a Mica e o Felipe já estavam com tudo pronto e partiram logo depois do café da manhã. Eles iriam ir “tocando” até onde pudessem naquele dia. O quarteto de argentinos também subiu pela manhã.
Eu, o Tiago e o Ediceu começamos a subir logo depois do almoço, pois planejamos nosso primeiro acampamento em Guanaquitos (3.600 m) por conta de nossa necessidade de fazer a aclimatação. Sem uma aclimatação bem planejada e bem feita, sintomas de mal de mal de montanha podem surgir e agravar-se, podendo ainda desenvolver doenças de altitude mais graves como edema pulmonar e cerebral.
Com nossas mochilas pesadas, por volta de 25 Kg cada uma, seguimos pelos 2 Km até Guanaquitos. Fomos em passos cadenciados em um bom ritmo para a aclimatação. Chegamos cedo e bem ao primeiro acampamento, a 3.600 metros de altitude, sem apresentar qualquer sintoma de mal de montanha. Tão logo escolhemos nossas pircas para montarmos as barracas. Eu e o Tiago com uma Mountain 25, e o Ediceu com uma Assault 2, que rendeu uma novela no Mercedário.
Durante a montagem, vem uma rajada de vento e vejo a barraca do Ediceu sair voando. “Ferrou!” – pensei. Fiquei sem reação observando aquela cena e imaginando o quanto a barraca de nosso amigo ficaria destroçada e nós três apertados nos dias seguintes de montanha em uma barraca para duas. Mas o Ediceu incorporou o Usain Bolt e dando um tiro para pegar a barraca, que foi parar alguns metros à frente. Naquele momento fiquei pasma com aquela arrancada naquela altitude. Mas hoje, com conhecimento acadêmico adquirido, entendo o porque aquilo foi possível e porque não afetou a aclimatação de nosso amigo. Em seguida fui atrás dele para ver se precisava de ajuda e ele já estava com a Assault 2 em mão e que, incrivelmente, estava inteira. Havia entortado apenas uma vareta, mas isso não utilizava a barraca. Ajudei-o a desmontá-la para descer de volta com ela de forma mais segura até o acampamento.
Depois de montado o acampamento, ficamos conversando e curtindo a montanha. Mais tarde jantamos e depois fomos dormir, pois no dia seguinte teríamos que fazer o porteio de aclimatação até o acampamento Cuesta Blanca (4.400m).
No dia seguinte, acordamos no horário de sempre e começamos a organizar os equipamentos na mochila para fazer o porteio até Cuesta Blanca e deixamos Guanaquitos por volta das 10:30. Seguimos em um ritmo bom, ainda mais com a mochila mais leve. Mas sempre tentando evitar se desgastar muito, ainda mais na primeira etapa de aclimatação. Até o Cuesta Blanca são 4 Km e 800 metros de desnível.
Saindo de Guanaquitos, encontramos uma turma de três gaúchos descendo a montanha. O que nos chamou a atenção foi o equipamento precário que levavam. Eles haviam pernoitado em Cuesta Blanca, mas desistiram por conta do frio e de uma barraca destruída pelo vento. Aquela era a primeira montanha deles. Acredito que tenham subestimado a altitude e o clima e foram sem planejamento adequado e mal informados. Nos contaram que no dia anterior passaram pelos nossos outros três amigos.
Chegamos em Cuesta Blanca por volta das 14:30. Eu sentia uma leve dor de cabeça, sintoma bem comum na altitude, mas estava com bastante apetite. Nossos amigos já haviam partido, mas encontramos acampados os três argentinos que conhecemos na base do Mercedario. Eles preferiram acampar em Piedra Colorada (3.800 m) em vez de Guanaquitos, e de lá vieram para Cuesta Blanca. Nosso cronograma estava bem parecido com o deles. Ficamos um bom tempo conversando com o trio: Augustin, Luciana (minha xará) e Rodolfo. Até nozes ganhamos, e estavam absurdamente saborosas.
Protegemos e escondemos nosso equipamento em uma Pirca e começamos a descida por volta das 16 horas. Uma hora e meia depois já estávamos em Guanaquitos.
O dia seguinte era o de subida definitiva para acampar em Cuesta Blanca. Desmontamos as barracas, organizamos as mochilas e começamos a subida por volta das 10 horas da manhã. Assim como no dia anterior, estava cheio de guanacos ao longo do caminho. Eles eram bem mansos e praticamente ignoravam a nossa presença. Quase que dava para fazer uma selfie com eles.
Eu e o Tiago estivemos no Cerro Mercedario em março de 2017 e chegamos até o acampamento Diente (6.100 m), mas ventos fortes com rajadas de mais de 100 Km/h e o prazo apertado para voltar nos forçou a abandonar a tentativa de cume e descemos. Naquele ano, ventava muito na montanha e fazia bastante frio. Mas agora em 2019 fazia bastante calor, talvez por ser janeiro ou o El Niño…ou a combinação dos dois. A encosta do Cuesta Blanca que naquela outra temporada era de fato “blanca”, agora estava marrom, com pouquíssimo gelo, que mal se podia brincar com os crampons nela. E durante a trilha de subida, uma nuvem de mutuca tentava nos atacar. Eu e o Ediceu as ignoramos, pois não queríamos desperdiçar energia com bobagem. No máximo mexia os braços para dispersá-las. Já o Tiago entrou em desespero com as mutucas. Queria matar todas – missão quase impossível – e ainda queria que eu e o Ediceu fizéssemos o mesmo. Mas demos de ombros.
Terminando o trecho mais íngreme de acarreo, um pouco antes de chegar ao próximo acampamento, encontramos mais três brasileiros. Entre eles estava o Henrique de Santa Rosa, que havia escalado o Everest em 2018. Eles estavam descendo, haviam desistido de tentar o cume porque havia rajadas de vento de até 70 Km/h. Nos contou que, estava usando o GPS do celular para se orientar na montanha e que, no primeiro dia da expedição deles, ele “deu uma perdida”, passando do acampamento Guanaquitos e indo parar mais dois quilômetros na frente, lá na Laguna Turquesa. Trocamos mais algumas palavras e nos despedimos. Chegamos em Cuesta Blanca por volta das 13:30 da tarde e logo montamos nossas barracas.
Passamos um perrengue para montar a Assault 2 do Ediceu. Ela tem os encaixes muito justos, o que piora com o frio e o clima seco. E a vareta torta serviu como um plus para essa dificuldade. Na temporada andina anterior, eu e o Tiago passamos por situação parecida. Levamos uma Assault 2 para o Pissis e foi o mesmo inferno montar e desmontá-la. Superada a dificuldade, entrei na nossa barraca e devorei um lanche.
Eu e o Tiago conversamos sobre os planos para os próximos dias, já que estávamos um dia antecipados em relação ao nosso planejamento. Mais tarde, o Ediceu veio nos visitar em nossa barraca e ficamos conversando sobre assuntos diversos, especialmente sobre montanhas, é claro, e em fazer um assado de bife de Chorizo na volta. Nosso amigo que só comia carne bem passava, salivava sonhando com uma carne mal passada.
Nisso, o Rodolfo bateu à porta de nossa barraca para nos informar sobre a previsão do tempo, que era de muito vento até o dia 22. Ele estava portando um aparelho Inreach da Garmin, e recebia as previsões do tempo de alguém que estava na cidade. Foi muita gentileza de sua parte compartilhar as informações conosco.
Mais tarde o Ediceu nos deu boa noite e se recolheu para sua barraca. O Tiago se ajeitou para dormir, e eu continuei lendo “Crônicas Saxônicas” no meu leitor digital (ótima aquisição para passar o tempo durante a aclimatação) sentada na minha cadeira portátil.
O dia seguinte, 20 de janeiro, foi destinado ao descanso ali em Cuesta Blanca. Apesar de não ter tanta pressa em levantar no dia de descanso, é importante não passar muito tempo dormindo e envolver-se com outra atividade, pois durante o sono a frequência cardíaca diminui bastante e, assim, a oxigenação.
Fizemos nosso desjejum e passamos o resto do dia praticando o “nadismo”. Bom, não ficamos sem fazer absolutamente nada. Eu pelo menos não. Aproveitei o tempo livre para curtir a montanha, já que o Mercedario é uma montanha com uma incrível beleza selvagem, e passeei pelas redondezas, desenhei a paisagem (sim, levei material de desenho para a montanha) e li. Ainda teve a hora da roda de conversa com chá.
Naquela noite, novamente, o Tiago deita mais cedo e eu continuo “fomeando” na leitura. Por volta das 22 horas senti um tremor muito sutil e pensei que o Tiago estivesse se coçando. Cutuquei ele: “Pára de se coçar desse jeito!”. E ele acordou e respondeu: “Não sou eu”. Ficamos nos olhando e sentindo que o tremor se intensificava. Obviamente tratava-se de um terremoto. A encosta do acampamento Cuesta Blanca é um amontoado de pedras, e por sorte nenhuma rolou durante o terremoto, que foi de baixíssima intensidade.
Nossa alvorada do dia 21 foi às 7 horas. Apuramos em organizar o equipamento para dentro das mochilas, logo depois do café da manhã, para partir para o Acampamento Pirca de Indio (5.200 m). Passamos um trabalho do cão para desmontar a barraca do Ediceu. Fizemos isso em três pessoas.
Como estávamos indo bem na aclimatação, ninguém sentia nenhum sintoma de MAM, não iríamos fazer porteio. Decidimos subir para acampar em Pircas. Vestimos novamente as mochilas com mais de 20 Kg. Enquanto terminávamos de montar as mochilas, chegaram dois alemães, que haviam deixado uma barraca montada ali em Cuesta Blanca há três dias. Eles desistiram do cume por conta do vento e através deles ficamos sabendo que os outros três de nossa equipe estavam em La Hoyada, e que o Pedro havia subido em direção ao cume.
Começamos a andar por volta das 10 horas e os amigos argentinos também. Vencido o primeiro trecho de 400 metros de uma subida íngreme e cheia de acarreos, a trilha vai ganhando altitude de forma mais suave, atravessando um largo campo de pedras. Mais adiante, tem um trecho mais curto de subida acentuada, que foi onde avistamos a Mica e o Felipe descendo. Decidiram não fazer o cume por conta de uma inflamação nos olhos do Felipe. Por segurança, preferiram descer até o carro e tratá-lo. O casal confirmou que o Pedro havia subido para fazer o cume. Nos despedimos e continuamos nossa subida.
Chegamos em Pircas de índio em torno das 15 horas, depois de vencidos 900 metros de desnível com as pesadas mochilas. Montamos as barracas, digo, montamos a Mountain 25 e fomos “brigar” com a barraca do Ediceu. Dessa vez eram quatro pessoas tentando montar a Assault 2. Depois de meia hora de sofrência, ouvimos o último “clic” do engate da barraca. Que alívio! Terminada essa etapa, nos abastecemos de água corrente de gelo derretido. De repente aparece um pontinho descendo a trilha até o nosso acampamento. Era o Pedro. E nos brindou com a feliz notícia de que havia feito o cume. Depois de um bom tempo de conversa, nosso amigo continuou a descida, pois desejava chegar até a base ainda naquele dia.
Nos recolhemos às barracas e seguimos a nossa rotina de montanha de conversa ao final do dia, muito chá e eu iniciando o segundo livro de “Crônicas Saxônicas”. De madrugada, registramos a temperatura mínima de -3ºC, enquanto há dois anos atrás, no final da tarde, já fazia -10ºC.
O dia seguinte seria destinado ao descanso em Pircas. Ficamos sozinhos no acampamento, pois o trio de argentinos subiu para La Hoyada naquele dia para atacar o cume no dia 23. Desejamo-lhes boa sorte e ficamos por um tempo os observando fazendo o “zigue-zague” daquela encosta.
No processo de aclimatação, quanto maior a altitude, mais tempo o organismo leva a se adaptar a ela, pois a pressão do ar é menor e, consequentemente, menor a pressão de moléculas de oxigênio. Por isso fizemos um planejamento com uma atenção maior nas altitudes mais elevadas. Assim, as chances de se obter sucesso no dia de cume são maiores.
De almoço fizemos uma refogada de embutidos e sonhando com os bifes de Chorizo. Apesar da altitude, eu estava com bastante apetite. No resto da tarde, eu e o Tiago passamos disputando o leitor digital. Até pensei em sair para desenhar, mas havia um vento constante que iria atrapalhar o meu trabalho.
No dia seguinte, no horário de sempre, subimos para portear equipamentos até La Hoyada. Ventava bastante e fazia frio, o que fez com que eu colocasse o anoraque e as luvas. A subida de Pircas até La Hoyada tem 600 metros de desnível em 2 Km, e a trilha segue um zigue-zague, o que a torna relativamente tranquila de fazer.
Chegando em La Hoyada, avistamos a barraca dos amigos argentinos. Nela estavam o Augustin e a Luciana. Eles haviam chegado até o Diente (6.100 m), mas o frio intenso os fez descer. O Rodolfo continuou. Calculamos que naquele horário ele deveria estar próximo ao cume. O Augustin mostrava-se preocupado com companheiro que partiu para o cume sozinho, mas procuramos tranquilizá-lo. Em seguida, escondemos nossos equipamentos em duas pircas. Em uma delas estava uma garrafa de “Jack Daniels” vazia. Quem leva uma garrafa de vidro de whisky para a montanha?! Zoamos com o achado e ficamos tirando foto como se aquilo fosse algo de outro mundo.
Voltamos ao acampamento Pircas de índio ainda cedo, e naquela hora fazia muito calor ali. Entramos nas barracas para se proteger do sol, e nos hidratamos com chá e fizemos um lanche.
No entardecer, o trio argentino desce até Pircas. Rodolfo estava esgotado. Ele havia subido até 6.600 metros, porém sentiu que chegou ao seu limite físico e desistiu do cume. Ele foi a segunda pessoa a afirmar que o dia de cume do Mercedario é mais exigente que do Aconcágua. Eu e o Ediceu demos uma mãozinha na montagem da barraca deles como forma de retribuir a ajuda que eles deram na complicada Assault 2.
Dia 24 de janeiro estabelecemos acampamento em La Hoyada (5.700 m). Novamente apanhamos para desmontar a barraca do Ediceu, com quatro pessoas para fazer isso. Nos despedimos de nossos amigos argentinos, que desceram a montanha ainda naquele dia.
Seguimos em direção à trilha de subida, que tem o começo em frente a uma pirca mais alta a robusta. Passando em frente a ela, vimos um rastro de comida espalhada junto a alguns objetos. O rastro tinha origem do interior da pirca. Só poderia ter sido obra de ratos! Como tivemos certeza disso? Na outra vez em que estivemos no Mercedário, acampamos exatamente ali, e alguns ratinhos filaram o lanche que o nosso companheiro daquela expedição levou (e não protegeu com saco estanque). Agora os bichinhos “fizeram a festa” com a comida que um casal desavisado havia deixado ali durante um porteio. Juntamos a comida e os pertences espalhados e os colocamos de volta no saco preto roído dentro da pirca. No generoso pedaço de queijo que juntamos, havia marcas de dentinhos do autor do crime. Achamos graça daquela situação, ainda mais pelo fato de haver ratos a 5.200 m e certamente a maioria das pessoas nem pensam nessa hipótese, a não ser que tenham passado por essa experiência. E provavelmente aquela pirca era o ninho daqueles bichinhos.
Chegamos em La Hoyada um pouco depois do meio dia. Eu e o Tiago montamos a nossa barraca e depois fomos sofrer mais uma vez para montar a barraca do Ediceu. O som do último “clic” do engate da vareta no ilhós era um alívio e causava uma alegria como se fosse a conquista de um cume.
Almoçamos e combinamos o ataque ao cume. Conforme a previsão do tempo que Rodolfo nos repassou, dia 25 teria chances mínimas de neve, enquanto para os próximos dias a previsão era de bastante neve. Deixamos os itens para o ataque ao cume todos organizados. Descansamos e nos alimentamos bem, pois o dia de cume geralmente é o mais desgastante.
Dormimos cedo, pois programamos para acordar às 2:30 para sair no máximo às 4h. Precisávamos estar descansados para o dia do cume. Quando tocou o despertar, ventava com rajadas de até 70 Km/h. Meu receio era de que o Tiago desistisse do cume por causa do vento. Era um vento forte, mas nada que pudesse impedir de atacar o cume. Diferente daquele da outra temporada de mais de 100 Km/h. Saí da barraca para ir ao “banheiro” e averiguar se o vento era do tipo que poderia me derrubar no chão. Mas não era, era mais o barulho. Mas só foi eu voltar na barraca que ele parou e ficou tudo calmo. Parecia que a montanha havia lido os meus pensamentos e colaborado comigo. E então começamos nos organizar para atacar o cume: tomamos café, fizemos os chás para colocar nas garrafas térmicas e às quatro da manhã deixamos as barracas vestidos para a guerra.
O Tiago seguiu na frente para encontrar a trilha no escuro. No início da subida em direção ao “Diente” ele é sutil, e encontrar uma trilha sutil ainda na escuridão é uma tarefa complicada. Mais complicada ainda quando se tem que tirar os mitones no frio para conferir o trajeto no GPS. À luz da lanterna, percebi que em minha calça impermeável havia algumas gotículas de gelo grudadas, e no ar vi flocos voando com o vento. A trilha na parte mais íngreme até o Diente é bem marcada, e faz um contínuo zigue-zague. Como eu conseguia enxergá-la bem, passei à frente.
Chegando no Diente (6.100 metros), o acampamento mais alto do Mercedário e uma pura roubada, pois é bastante exposto ao vento, pudemos prestigiar o amanhecer, que na na montanha é muito lindo e não existem palavras para descrevê-lo. Mas os primeiros raios de sol foram cobertos por neblina, que dominou a montanha. Em seguida começou a formar sincelos, que eram jogados contra nós pelo vento. À medida que íamos ganhando altitude, aumentava a quantidade de sincelos até que a 6.400 metros começaram a cair os primeiros flocos de neve.
Em nenhum momento alguém cogitou a hipótese de desistir. Por segurança, cada um levava um GPS ligado dentro da jaqueta. Apesar da falta de visibilidade, era possível enxergar a trilha, que ia se cobrindo de neve. A partir dos 6.600 metros, já acumulava 5 Cm de neve. Nisso, eu ouço o Ediceu berrando: “É! Isso aqui sim é alta montanha!” Virei para ver o que estava acontecendo e eram ele e o Tiago gravando vídeo naquele no vento e gelo.
Em meio à neblina, por volta e meia, meu nome era chamado para esperar os guris. Na montanha, uma equipe não deve se dispersar, ainda mais durante uma nevasca, mesmo que o contorno da trilha ainda estivesse marcado.
Chegamos em um platô e estávamos perto do cume. “Para que lado vamos?” – perguntou o Ediceu. Olhei para a direita, onde continuava uma superfície plana nevada depois para a esquerda e enxerguei um vulto de rocha escura entre a neblina. Não tive dúvidas que o cume era ali. Apurei o passo, desviando os trechos de gelo duro. Subindo o “altar de pedras”, deparei-me com a estaca do cume. Eram 13:30 da tarde. “É cume!” – anunciei. Em seguida chegaram o Tiago e o Ediceu, que se emocionou muito com a conquista. Não havia vista de nada, só neblina, mesmo assim comemoramos muito a vitória. Ficamos ali por quase 10 minutos, em meio à nevasca, tirando fotos e fazendo vídeos.
Começamos a descer e a neve já acumulava cerca de 25 Cm na trilha. Ventava mais forte ainda e descemos com cuidado, ainda mais que estávamos sem crampons. Mesmo usando meus goggles, entrou gelo nos meus olhos, que mesmo não sofrendo danos, ficaram bem vermelhos por mais de um dia.
Eram quase 18h quando chegamos de volta no acampamento. Tirei o equipamento de dentro da mochila e sacudi ela com a abertura virada para baixo e saiu “quilos” de gelo de dentro dela e dos bolsos. Rapidamente tirei as roupas de cume e fui comer algo. Estava faminta. Só fui dormir depois de alimentada e de várias xícaras de chá.
Acordamos no dia seguinte por volta das 9 horas e começamos a baixar por volta das 11 horas. Durante a descida passamos por umas seis pessoas que estavam subindo para acampar em La Hoyada. E depois por mais três que estavam subindo para Pircas de Indio. Fiquei surpresa como haviam vários montanhistas escalando o Mercedario.
Chegamos de volta ao Refúgio Laguna Blanca por volta das 18 horas, onde encontramos um grupo de argentinos que estavam se preparando para começar a montanha no dia seguinte. Nós pernoitamos no refúgio e partimos para Barreal no dia 27/01 de manhã, onde aguardamos virar o mês para fazer o permiso da Temporada Baixa do Aconcágua.
Nosso tracklog: https://www.wikiloc.com/hiking-trails/mercedario-6720-m-116683944
Próxima expedição que iremos conduzir neste local: https://clubetrekking.com.br/travessias/mercedario/
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Autora: Luciana Moro Guia há 9 anos. Atleta Deuter no Brasil. Montanhista desde 2011. Futura Educadora Física pela UFSM. Segunda mulher brasileira com mais cumes andinos diferentes acima dos 6000 metros: Aconcágua (6962m pela rota 360º), Ojos del Salado (6893m), Pissis (6795m), Mercedário (6720m – 2x), San Francisco (6018m – 2x), Fraile (6061m), Barrancas Blancas (6119m), Vicuñas (6067m), Peñas Blancas (6037), Ermitaño (6146m) e Nevado Famatina (6115m), Bonete Chico (6759m), Aracar (6095m), Quewar (6140m), Llullallaico (6752m – 2x), Antofalla (6440m), Laguna Blanca (6018m). Sócia proprietária do Clube Trekking Santa Maria e da Loja Bota na Trilha. |