Fazia um bom tempo que queria fazer uma travessia na Serra do Ibitiraquire. Sugeri ao Tiago Korb de programar um trajeto saindo da Fazenda do Bolinha, que compreenderia 10 cumes. Mas ele nem deu muita atenção. Disse que seria complicado pela logística de transporte, clima e outros fatores.
Não desisti, pois queria realizar esse sonho e de preferência no mesmo ano ainda! Então recorri ao nosso amigo Fábio Carminati, que também tinha interesse em fazer alguma travessia nessa Serra. Combinamos de os dois ficar pilhando o Tiago em montar o trajeto e fazer a travessia.
Passamos semanas juntando informações e lendo relatos, os mais interessantes mandávamos para o Tiago tanto via facebook quanto por e-mail. Isso sem contar das vezes em que eu tocava nas palavras “travessia” e “Serra do Ibitiraquire”.
Mas a insistência valeu a pena! O relato dos perrengues despertou o interesse no Tiago. Próximo passo seria conseguir os dados de GPS da região com amigos montanhistas dele para montar o roteiro, uma vez que ninguém conhecia a Serra do Ibitiraquire muito bem. Eu tinha ido uma única vez fazer a trilha até o Pico Tucum. Já o Tiago havia ido ao Pico do Paraná anos atrás em um dia de chuva, ou seja, não conseguiu ver nada.
Com ajuda de vários amigos montanhistas (entre eles Elcio Douglas e Mildo Junior), o Tiago foi conseguindo os trajetos para GPS que passavam por diversos cumes. Na minha ideia, o Pico do Paraná e o Ciririca não poderiam ficar de fora do planejamento. O primeiro por ser o cume mais alto da região Sul do país. O segundo por levar a fama de “K2 paranaense”, o que despertava minha curiosidade.
Mas onde começar e terminar a travessia? Os ajustes foram sendo feitos com o passar dos dias. De repente vem à tona o conhecimento da existência da Travessia Bolinha x Marco 22. A ideia original da travessia era fazer 10 cumes da Serra do Ibitiraquire e se desse tempo ou se não chovesse, poderíamos fazer esse trecho da Serra da Graciosa até o Marco 22 da Estrada da Graciosa.
Surgiu então o Getulio Vogetta com outra opção de roteiro via trilha da Face Leste do Ferraria. Conseguimos o trajeto de GPS dela e desta forma se consolidou como opção de início da nossa travessia, acrescentados ainda, mais alguns cumes. E por fim, o trajeto final seria até a Estrada da Graciosa, terminando no Marco 22.
Diante do desafio, da elevada altimetria, da promessa de encontrar mato bem fechado, o Tiago propôs de adotar o sistema de travessia ultralight. Ou seja, usar as mochilas de 30L em vez das cargueiras. Para isso, levamos o mínimo necessário e itens bem técnicos que ocupam pouquíssimo espaço. Deixamos o dormitório da barraca, levando apenas o sobre teto e o foot print por exemplo. E assim foi: total desapego do conforto para levar somente o que era absolutamente necessário.
A equipe foi formada com base em outras travessias pesadas que fizemos (Fábio Carminati, Luciana Moro, Marcelo Nava e Tiago Korb). Apenas faltava conseguir uma janela de pelo menos 5 dias de tempo bom. O que naquela região já é difícil, pois chove em mais de 270 dias no ano. Em ano de El Niño é ainda mais difícil! Mas o São Pedro colaborou. A previsão do tempo estendida marcava 10 dias de sol na segunda quinzena de agosto.
Íamos nos preparando, deixando equipamento e comida em separado na medida em que a previsão do tempo se confirmava.
Viajar da região central do Rio Grande do Sul para Curitiba não é nada agradável. São pelo menos 14 horas sentada dentro de um ônibus. Mas o sacrifício vale a pena se o tempo ajudar. E assim eu e o Tiago partimos de Santa Maria RS na tarde do dia 18 de agosto rumo à capital paranaense, onde a amiga Sandra Elize nos receberia para fazer a logística até Antonina.
1º DIA: Terça-feira 19/08/2014.
Nosso ônibus chegou na rodoviária com mais de uma hora de atraso. O Marcelo e Fábio já nos esperavam na rodoviária. Assim que chegamos, encontramos eles no local marcado e partimos para a casa de minha mãe, onde deixaríamos nossas roupas de “civis” de viagem para trocar pelas roupas de trekking.
Em seguida, fomos ao encontro de Sandra, quase vizinha, para partir para Antonina. Durante o trajeto fomos conversando sobre nosso planejamento de travessia e demais assuntos sobre montanhismo.
A Sandra, em um determinado momento, me alcançou um pacote e pediu para que escolhesse uma bandana de presente. Escolhi uma de temática florida com verde, que poderia usar o lado estampado ou o de cor única para combinar com minha calça da travessia. Assim, já coloquei o presente na cabeça para usá-lo durante a travessia para dar sorte (sim, eu acredito nessas coisas).
Descemos pela Estrada da Graciosa com tempo bom. Essa foi a terceira vez que passei pela estrada e a primeira com tempo bom! A medida que descíamos, ia se revelando a belíssima mata Atlântica que cobria as imponentes montanhas. Ah, as montanhas! Várias delas eram visíveis durante o percurso, e uma boa parte delas não faziam parte da nossa travessia.
Tentamos avistar o Marco 22, o ponto final da travessia, mas não enxergamos. Então combinamos o resgate de volta no primeiro Recanto da Graciosa. Depois de 1:40 de estrada, chegamos a Antonina e, em seguida, no Bairro Alto e finalmente na Fazenda Lírio do Vale de onde começaríamos nossa longa pernada. Descemos do carro e nos despedimos de nossa amiga Sandra.
Iniciamos a Travessia em torno das 11:40, começando pela trilha da Conceição. O dia estava bastante ensolarado com algumas nuvens encobrindo os cumes das montanhas.
Logo se revelou o cume entre as nuvens da primeira montanha, o Ibitirati.
Nós estávamos a 190 metros de altitude e teríamos que atingir o cume que tinha 1745 metros de altitude até o final da tarde. Parecia ser uma missão quase impossível!
Passamos pela ponte Indiana Jones por volta das 12:40 e descemos até o Rio Cotia para almoçar. Fizemos um lanche rápido e retomamos a caminhada.
A trilha da Conceição é muito bonita. Durante o seu trajeto íamos admirando a beleza de sua vegetação e brincando que em seguida a “barbada” iria terminar, afinal, tínhamos que subir mais de 1700 metros até o primeiro acampamento.
A trilha de subida era sinalizada com um pneu. Em um determinado ponto ficamos procurando o tal pneu à esquerda da trilha. Achamos meio escondido pelo mato.
Subimos o degrau e a parte divertida começou. Muito mato fechado durante a subida.
Em seguida começaram as cordas, opa, a primeira não era corda, era mangueira de bombeiros.
Mais adiante o mato fechado diminuiu e a trilha começou a ficar mais íngreme e mais bonita, e começando a ter vista dos demais cumes.
Ao lado esquerdo se via o paredão do Ibitirati, mas o cume ainda estava coberto por nuvens. Mas depois o céu ficou mais limpo e podíamos ver também o Pico Paraná.
Chegou o primeiro trecho de corda. O pessoal subiu sem maiores dificuldades. Eu me agarrei na corda e me puxei para cima.
Mas não via a hora de chegar no “degrau” da face leste do Ferraria. Quando estávamos montando o roteiro da travessia, fomos informados desse trecho de maior dificuldade. Então eu e os demais ficamos imaginando como seria.
Enfim, chegou o degrau. E realmente era merecedor da fama de ser um “bicho papão”. Um trecho da subida com inclinação média de 80 graus e em alguns pontos de 90 graus.
Entre a pedra e o abismo havia um trecho de chão um pouco maior que meu pé. A pedra do degrau era quase da minha altura (1,60 m). Haviam dois lances de corda: o da primeira subida, que descia até a metade do degrau; o segundo ficava preso nas duas pontas. O Tiago e o Marcelo foram os primeiros a subir. Nesse momento eu fiquei observando o modo de como eles subiam e pensava como eu com minhas pernas curtas ia alcançar aquela pedra. O Marcelo escorregou o pé na primeira tentativa, depois se agarrou na corda e usou bastante força para subir. Se os homens penaram para subir pela corda, imagina o que seria para mim!
Chegou a minha vez. Envolvi bem a mão direita em um dos nós da corda e a esquerda no corpo da corda.
Apoiei o pé na pedra, embalei para puxar na subida, mas deslizei o pé, voltando à base. O Tiago falava:
– Apoia os pés na pedra e firma bem com as mãos. Tenha no mínimo 3 pontos de apoio sempre.
Mas não adiantava muito, além da pedra lisa o meu ombro esquerdo também não estava ajudando, visto que o havia lesionado ele umas semanas antes em Santa Maria. Além de ele estar fraco, machucá-lo de novo e logo no início da travessia seria algo péssimo, ainda mais sabendo que teríamos diversas escalaminhadas, cordas e trechos de via ferrata pela frente. E para completar, havia um abismo logo atrás de mim. Um erro poderia ser fatal!
Fiquei um olhando a pedra procurando onde apoiar melhor o pé. Mas para todo o problema tem uma solução. Chamei o Fábio e pedi para ele firmar a perna bem na frente do degrau e pedi para o Marcelo ficar supervisionando a minha subida. Firmei bem as mãos na corda, peguei impulso na perna do meu amigo e subi. No fim do primeiro lance de corda, o Marcelo me deu a mão e assim e alcancei o segundo lance de corda, superando o famoso degrau do Ferraria.
O próximo trecho de corda foi tranquilo de passar. Mas teve corda porque o Tiago levou a dele. A corda da trilha estava cheia de limo e para completar sem a capa.
A tarde avançava e a alteração da posição do sol projetava a sombra das montanhas ao longo do vale. Ou a luz solar passava entre as frestas entre os imponentes paredões, formando um efeito incrível.
Estávamos determinados em chegar ao local do acampamento planejado, mesmo que seguíssemos a trilha durante a noite. A subida final até o local do acampamento, no ante cume do Ferraria, foi bastante íngreme, com uma escalaminhada interminável. Era um barranco bem liso, e subimos ele quando já escuro, agarrando a vegetação.
Eu estava com a cabeça latejando da enxaqueca provocada, possivelmente, pela noite mal dormida durante a viagem. Na verdade, enxaqueca é uma certeza toda vez que viajo de ônibus até Curitiba. Dessa vez teve o plus da noite mal dormida. Isso fez com que eu fizesse o último trecho da subida com mais vontade.
Chegamos ao local do acampamento em torno das 18:40. Ali tinha um espaço justinho para três barracas. Começamos a ajeitar o camping. Deixei minha mochila com o Tiago e avisei que ia para um canto mais escuro do cume fechar um pouco os olhos, pois a dor de cabeça estava muito forte. Achei uma moita e deitei ali e fiquei observando as luzes de Paranaguá e Morretes por trás do Pico Paraná e de Curitiba mais para o sudoeste.
Fechei os olhos que estavam doendo e acabei cochilando um pouco. Acordei com as vozes dos guris e encontrei o acampamento pronto. Meus olhos doíam muito e anunciei que ficaria com os olhos fechados um pouco. Não quis tomar remédio, sou meio teimosa para essas coisas. Descansando naquela noite estaria 100% no próximo dia.
O Tiago aprontou uma ótima polenta com calabresa e queijo provolone para a janta. Assim que jantei, me ajeitei para dormir pelas 20:30.
No meio da madrugada acordamos com roncos bem altos. Eu e o Tiago ficamos rindo e sem jeito de acordar o nosso amigo. De repente o Fábio pergunta da barraca:
– Vocês estão acordados? Eu não consigo dormir com esse ronco.
O jeito foi acordar o Marcelo. Depois de muita insistência, chamar pelo nome e sacudidas na barraca, ele acordou.
Fora a sinfonia de ronco, a noite foi maravilhosa!
Devido à dificuldade da trilha da face leste do Ferraria, apelidei carinhosamente a montanha de “Ferraria com tua vida”.
Dados do 1º dia da travessia:
Distância: 10,11 Km a pé.
Altimetria: 1742 metros de aclive acumulado e 186 metros de declive acumulado.
Trilha da Face Leste do Ferraria:
Google Earth:
Trajeto do primeiro dia (Face Leste do Ferraria), para download:
http://pt.wikiloc.com/wikiloc/view.do?id=7723510
2º DIA: Quarta-feira 20/08/2014.
Acordamos em torno das 6:30, fazia um amanhecer muito bonito. Logo o Tiago saiu para fotografar o belo evento da natureza e a linda vista.
Tomamos o café da manhã e partimos para o cume principal para assinar o livro. Depois seguimos para o Taipabuçu.
Para você entender o nosso trajeto do dia anterior e dos próximos dias.
Subindo o Taipa, encontramos um casal indo para o Ferraria:
– Mais uns desocupados fugindo para a montanha no meio da semana?
Brincou o homem.
– O trabalho permite, né!
Respondeu prontamente o Tiago. Paramos por pouco tempo para conversar e contamos sobre a nossa travessia, de onde viemos e para onde estávamos indo. Eles nos desejaram boa sorte e cada grupo seguiu para seu rumo.
Eu e o Tiago chegamos primeiro ao cume do Taipabuçu (1733 metros), ficamos aguardando os guris chegarem. Enquanto isso, muitas fotos.
Assim que chegaram, fomos assinar o caderno do cume por volta das 11:00, relatando sobre a nossa travessia. Para a minha surpresa, havia uma histórinha do Tom e Ana.
Depois seguimos para o Caratuva. Paramos para almoçar antes de chegar ao cume para aproveitar a agradável sombra do mato.
Enquanto isso, ficava admirando a vegetação. Tinham bromélias lindíssimas que eu não cansava de olhar.
Assim que almoçamos, continuamos a subida ao Caratuva, passando pela “Pedra da Faca”, que era uma pedra de formato diferente que obriga o montanhista a tirar a mochila, mesmo ela sendo pequena.
Um trecho um pouco mais técnico é a canaleta no final da subida para o Caratuva.
Tínhamos uma bela vista da parte que fizemos da travessia.
Chegamos ao cume do Caratuva (1862 metros), em torno das 14:00, assinando novamente o caderno com o relato do nosso trajeto.
Dali havia uma belíssima vista para o PP, onde deveríamos chegar ainda no mesmo dia.
Na verdade, o ideal seria chegar ainda no Itapiroca naquele dia, mas a coisa não estava rendendo até lá. Era muito mato fechado, e os guris foram com cargueiras enormes, o que fez com que eles virassem vítimas constantes das terríveis taquarinhas.
Saindo do Caratuva, deveríamos pegar a “Trilha da Conquista” para chegar ao Pico Paraná.
Na verdade entramos ela, mas não conseguimos seguir na trilha já que estava quase fechada. O arquivo de GPS que o Tiago recebeu tinha erro de 80 metros da trilha original. Como pouca gente passa por lá, o mato tomou conta e foi uma “novela” para encontrar a trilha verdadeira. Subimos e descemos várias vezes, andamos de um lado para outro se embretando em mato cada vez mais fechado para tentar achá-la e nada.
Resolvemos então seguir a escassa marcação por fita e chegamos em outra trilha. Não era a Trilha da Conquista, mas nos levava onde queríamos, até a água próxima do A1 (Acampamento 1).
Chegando na água próxima ao A1, que preenchi os 3L do meu Streamer, fui seguindo rumo ao cume do PP (Pico Paraná), esperando que os demais me acompanhassem. Em seguida vieram.
Nessa parte da travessia, não “desgrudava” os olhos do PP, ficava admirando o gigante em todos os seus ângulos. Estava realizando um sonho, pois sempre nas minhas idas a Curitiba, quando planejava ir ao Pico Paraná a previsão do tempo marcava chuva. Mas naquele dia não tinha sinal de chuva. O sol ardia e o tempo estava muito seco.
O Tiago e eu fomos seguindo a trilha de modo empolgado, pois era a minha primeira vez no PP e a primeira dele com tempo bom. E assim fomos subindo pela trilha bem batida e admirando a vista, especialmente por onde já havíamos andado.
O Fábio e o Marcelo estavam mais para trás. Quando atingimos a primeira via ferrata, eles estavam recém descendo para a via ferrata.
O Marcelo estava no meio do trajeto entre o Fábio e nós dois. Quando avistamos o Marcelo, perguntamos o paradeiro do Fábio e ele nos avisou que ele decidiu acampar no A2 (Acampamento 2), devido à câimbra e iria fazer companhia ao amigo por ter pouquíssima água (lá tem uma bica d’água fraca).
Então nós continuamos a subir ao cume racionando água. Como o ar estava seco demais, me descuidei e bebi água demais. Cada um de nós dois tinha um pouco mais de 1L para a janta e café da manhã. Além disso, na manhã do dia seguinte, faríamos ainda os cumes União e Ibitirati.
Em meio ao caminho, encontramos mais 4 pessoas de Santa Catarina. Eles também iriam acampar no cume. Como estavam em ritmo mais lento, ultrapassamos eles e chegamos primeiro ao cume para escolher um local bem protegido para o nosso acampamento, visto que não levamos o dormitório da barraca, apenas o sobreteto e o footprint (em função da diminuição de peso e volume na mochila).
Quando chegamos ao cume, ainda pudemos aproveitar o pôr-do-sol.
Escolhemos o canto para o nosso acampamento e fomos tirar fotos do entardecer de cima do ponto mais alto do sul do país.
A sensação de estar ali no topo e ver o sol se pondo, as luzes das cidades lá longe são belíssimas.
Depois da sessão de fotos, voltamos ao nosso cantinho para montar o acampamento. Logo que terminamos, chegou o grupo catarinense.
Muito prestativo, o Tiago foi ajudar o pessoal a encontrar espaço confortável para suas barracas:
– Aqui é um bom lugar, ali também tem…
– Mas é só uma barraca! Respondeu um dos catarinenses.
Eu, que estava na porta da barraca, espichei a cabeça para fora para dar uma olhada na barraca que serviria de abrigo para os quatro marmanjos. Era uma pequena iglu de tamanho máximo de 3/4 pessoas! Tive que fazer um esforço extra para não largar uma sonora gargalhada.
O Tiago voltou e fomos assinar o caderno do cume e tirar mais umas fotos. Naquela noite ventava bastante e a temperatura baixou para 4 ºC. Fiquei insistindo para voltar para a barraca devido ao frio.
Voltamos ao nosso acampamento e ficamos fechados dentro da barraca para nos proteger do vento. Ficamos batendo papo, lendo o planejamento da pernada do dia seguinte e contabilizando o que ainda havia de água. Além da janta e café da manhã, “sobrou” uma justa quantia para fazer chá para os dois. Tirei as botas, que já apresentava um rasgo na biqueira do pé esquerdo, mas nada para se preocupar, pois a estrutura interna se encontrava boa. O direito ainda estava intacto, por enquanto…
Enquanto isso, lá fora, nossos vizinhos faziam a maior festa, com muita conversação, álcool e até maconha. Quatro marmanjos bêbados em uma pequena barraca era a legitima festa do sagu, só bola!
Assim que começaram a organizar a janta, eles receberam uma “visita” e ouvimos um deles:
– Olha, um “rato da montanha” mexendo na nossa comida!
– Não, é um gambá!
Ouvindo isso, tratamos de proteger nossa comida. De repente ouvi um barulho de animal se movimentando e da barraca se movimentando.
– Tiago, cuidado! Tem um bicho ali fora. Espanta ele, senão ele vai na nossa comida.
O Tiago levantou-se para tentar afastar o bichinho e acabou derrubando a panela com o chá quente. Foi uma confusão! Era o Tiago abanando nas frestas da barraca e eu tentando levantar a panela Virou um pouco de água no footprint e o saco de dormir. Molhou um pouco na parte externa, mas foi apenas em um canto. Logo ele secou por completo por conta da baixa umidade do ar.
O animalzinho voltou a perturbar nossos vizinhos, que passaram a dar comida para ele. Comida e pão com uísque para ele inclusive. O que além de prejudicar o animal ainda acostuma a fauna local a ir em busca de mais comida nas barracas.
Colocamos tudo dentro dos sacos estanques, até o lixo, para impedir que o cheiro atraísse a desagradável visita. Deixamos para fora somente o material do preparo da janta.
Assim que começamos a fritar a calabresa, apareceu pela fresta da barraca uma carinha marrom muito bonitinha. Era o gambá, que depois fomos descobrir que, na verdade, era uma Cuíca. O Tiago voltou a afastá-la. Terminada a janta, viramos a panela para baixo e guardamos o resto do alimento.
Durante o sono, qualquer barulho acordava achando que fosse a Cuíca fuçando nas nossas coisas, mas não, era o vento. Acho que o animalzinho foi dormir, graças ao trago que nossos vizinhos deram. Imagina a ressaca que o bicho teve depois!
Aquela foi uma noite longa, os vizinhos fazendo festa, o vento forte. Sonhei até com a Cuíca foi dormir conosco no saco de dormir.
Dados do 2º dia da travessia:
Distância: 11,24 Km a pé.
Altimetria: 1343 metros de aclive acumulado e 1210 metros de declive acumulado.
Google Earth:
3º DIA: Quinta-feira 21/08/2014.
Acordamos assim que começou a clarear o dia. Tínhamos pressa, pois nosso objetivo era acampar na placa 2 do Ciririca, onde deveríamos encontrar o Sérgio Sampaio de SC, que estava fazendo a Travessia Fazenda do Bolinha x Graciosa.
Fizemos o café de dentro da barraca com uma bela vista do amanhecer.
Assim que terminamos, peguei as minhas botas para calça-las e aproveitei para dar mais uma verificada no acampamento ao lado. Caí na risada com o que vi: a iglu desmontou com o vento. Fiquei imaginando os quatro socados naquela barraca capenga.
Mochilas arrumadas, partimos para o União e depois o Ibitirati. Estávamos com pouca água, somente o suficiente para molhar a boca.
Pegamos a trilha perto da caixa do cume do PP para o União. Era uma descida um pouco íngreme e chatinha, ainda mais que de manhã fico completamente descoordenada para caminhar.
Marcamos no GPS o cume do União e rumamos para o Ibitirati.
A subida era bem tranquila, mas com mato bem fechado com arbusto com galhos finos que rasgavam a pele. Na real, nós já estávamos com a pele bem cortada devido especialmente às taquarinhas. Mas ali no Ibitirati foi um plus. Marcamos também o cume do Ibitirati (1850 metros), e tiramos fotos.
Para entender o que são as escalaminhadas desta travessia!
Logo já estávamos de volta ao PP para assinar novamente o Livro do cume e registrar nossa ida aos outros picos do Maciço do Ibiteruçu, bem como a nossa meta de chegar ao Ciririca até o fim do dia.
Começamos a descer a trilha do PP para encontram o Fábio e o Marcelo.
Eles estavam acampados no A2.
Ali perto deveríamos pegar a entrada da trilha até o Pico Camelos. Os nossos amigos optaram por não nos seguir e combinamos que eles iriam seguir o resto do roteiro do dia, partindo para o Itapiroca e mais adiante nos encontraríamos novamente.
Para “variar” o trajeto do GPS que o Tiago recebeu estava errado e foi muito difícil de encontrar a entrada da trilha. Deduzindo o local, entramos mato a dentro para achar a trilha para o Camelos. Por diversas vezes fiquei enroscada no meio da vegetação, isso que estava com a mochila menor. Imagina se fosse a grande!
Novamente, depois de muito sobe e desce, encontramos a trilha bem batida que ia para o Camelos (1555 metros). Novamente, chegamos ao cume, tiramos fotos e registramos no GPS.
Não deixo de registrar a nossa decepção com o Camelos: pouca vista, ainda mais que perdemos um bom tempo tentando achar a sua trilha, além de ter conseguido mais uns ferimentos com o mato fechado da “trilha errada”.
Para voltar à trilha do PP, pegamos a trilha batida certinha. Ela saía um pouco mais para cima de onde entramos, bem próxima à Casa de Pedra.
Pelo visto, a entrada dessa trilha “oficial” do Camelos serve também de banheiro pela quantidade de papel higiênico que havia por ali.
De fato, o PP estava tapado por pedaços de papel higiênico até mesmo no cume. Isso foi algo que me deixou bastante chateada: a falta de educação das pessoas com a montanha.
Quando começamos a descer no sentido do Itapiroca, eu e o Tiago combinamos de não almoçar e fazer um rápido lanche para não perder tempo e conseguir cumprir nossa meta do dia. Como os guris foram na frente, provavelmente eles iriam almoçar antes de nos encontrar.
Seguimos descendo rapidamente o PP. No último lance de via ferrata, apoiei a mão direita em um dos grampos, abri o braço esquerdo e apoiei a mão em uma outra que estava ao lado e… Lembra do ombro machucado? Pois é, senti uma forte fisgada nele. Daquele tipo de dor que reflete para o resto do braço. Soltei espontaneamente um “ai”. Em seguida a dor passou, foi só um “choque”.
Pegamos água no início da trilha para o Itapiroca. Que alívio! Com o clima seco e quase sem beber água desde a noite do dia seguinte, já estava sentindo muita falta deste liquido precioso.
A subida para o Itapiroca foi um “passeio”: bem aberta e fácil.
Ficamos tagarelando e combinamos de chegar ao Ciririca ainda naquele dia nem que fosse à noite! E imaginamos onde estariam os guris. Naquelas alturas eles já deveriam estar bem longe devido a nossa demora para chegar ao Camelos.
Chegando na área de acampamento do Itapiroca encontramos o bastão de caminhada do Fábio atirado no chão. Pronto, o Fábio abandonou o bastão para diminuir o peso.
Que nada, assim que tivemos maior amplitude de visão pudemos ver o Fábio e o Marcelo sentados apoiados numa pedra, começando a abrir as mochilas. Eles ficaram nos olhando boquiabertos e exclamaram:
– Já? Mas nós recém chegamos! Achamos que vocês fossem demorar mais.
Decidimos em fazer um lanche ali mesmo para não perder mais tempo. Em seguida continuamos o nosso trajeto.
Dali do topo do Itapiroca (1780 metros) já era possível enxergar os cumes do Tucum e Camapuã, meus dois primeiros cumes na Serra do Ibitiraquire.
Não passaríamos por eles nessa travessia, mas guardo com carinho as lembranças daquela trilha, especialmente na companhia dos amigos, Daniela Faria, José Geraldo, Diele e Dalla Trekker.
O cume seguinte seria o do Cerro Verde.
No fundo do vale, para a subida ao cume, havia uma marcação com a fita da travessia “Alpha Crucis” realizada em 2012 por Élcio Douglas e Jurandir, considerada a travessia mais difícil do Brasil.
No lugar chamado de Ombro Verde que antecede o cume do Cerro Verde é possível de ver a tarde a “face” no Pico Paraná.
O cume do Cerro Verde (1618 metros), possui a melhor vista do maciço do Ibiteruçu e especialmente do Ciririca.
O Ciririca é conhecido como o K2 paranaense e antes da travessia havia lido diversos relatos de ataques e travessias que passavam por ali. Diversas pessoas falavam das terríveis cordas e da rampa. Meu Deus!
Eu e o Fábio estávamos imaginando como seria a terrível rampa do K2 paranaense. Na nossa ideia deveria ser algo pior que a face leste do Ferraria pelos relatos. Bom, naquela altura da travessia já estávamos preparados para tudo. Mas a curiosidade sobre o K2 paranaense aguçava muito.
Depois do Cerro Verde, os próximos cumes seriam Meia Lua, Pico do Luar e Sirizinho.
Eu, na minha expectativa infantil, estava louca para chegar nesses cumes. Os nomes me agradavam e imaginava uma vista maravilhosa da serra dos seus cumes. Que nada! Virado em mato espinhento.
Quando estávamos chegamos ao Pico do Luar, o sol já estava se pondo.
Quando começamos a descer o Sirizinho, pegamos nossas lanternas de cabeça. Pois estávamos dispostos a acampar nas placas do Ciririca ainda naquela noite, ainda mais que marcamos de encontrar o Sérgio naquela data.
Próximo a base do Sirizinho, o mato estava bem fechado. E como já estava escuro, seguimos em ritmo mais lento, entre ataques de mosquitos e mais taquarinhas. Cuidando onde estávamos pisando para não cair em nenhuma greta.
A trilha alternava entre pedras de rio e mato. O Fábio e o Marcelo que estavam com mochilas maiores, penavam para se desvencilhar das taquarinhas e dos galhos das plantas. Se de dia já era complicado, de noite era pior ainda! Então a todo momento virava para trás para ver se eles estavam vindo junto. Numa dessas “olhadas”, quando fui virar novamente o rosto para frente, um galho espinhento entrou no meu olho e um espinho ficou cravado no olho direito. Consegui tirar e em seguida passou a dor.
Para evitar que alguém se perdesse, quem ia na frente esperava o de trás aparecer e iluminava em direção do colega para que ele enxergasse a localização. Esse método também adotamos nos trechos de mato mais fechado.
Mas em um determinado trecho as fitas começaram a ficar escassas e íamos e voltávamos tentando encontrar a continuação da trilha. Mesmo navegando no GPS, o Tiago não encontrava o caminho já que o trajeto que tinha não era muito preciso. Andar no mato no escuro é algo bem complicado, ainda mais quando não se conhece o local. Não é uma prática muito recomendável.
Então chegamos em um determinado ponto e o mato se fechou novamente, o Tiago falou para voltar e pediu para que nós três tentássemos visualizar alguma trilha ou avisar uma fita.
Fiquei iluminando para as árvores até que enxerguei uma fita vermelha.
– Ali tem uma marcação de fita!
Exclamei apontando para uma árvore.
– Uhu! Achamos!
Eu e o Fábio comemoramos o meu “achado” batendo as mãos.
Mas o meu “achado” era na verdade uma clareira, provavelmente de um acampamento de alguém.
Como estava bem difícil encontrar a trilha naquela escuridão e seria desgastante continuar procurando sem resultados. Decidimos acampar ali mesmo naquela clareira. Local limpinho e com água por perto: perfeito! O espaço acomodava tranquilamente uma barraca e outras duas bem apertadas. Então nós decidimos bivacar já que o tempo estava bom.
Estendemos o footprint no chão e o sobreteto da barraca por cima dele para depois só colocamos o isolante. O Marcelo foi o único que preferiu montar a barraca, conseguindo um pequeno espaço irregular. O Fábio fez seu bivaque ao nosso lado. Fomos dormir logo depois que jantamos pelas 21:00.
Deitei de barriga para cima e fiquei olhando o céu estrelado entre as árvores. E assim adormeci. Foi a melhor noite de toda a travessia!
Dados do 3º dia da travessia:
Distância: 9,65 Km a pé.
Altimetria: 1727 metros de aclive acumulado e 2178 metros de declive acumulado.
Google Earth:
4º DIA: Sexta-feira 22/08/2014.
Acordamos assim que começou a clarear o dia. Tomamos o café e arrumamos as coisas na mochila rapidamente. O fato de ter bivacado ajudou muito na questão da agilidade para guardar o equipamento.
Com pressa, saímos a procura da continuação da trilha, que encontramos a uns 90º de desvio de onde estávamos indo na noite anterior.
Descemos mais em direção ao vale do Siri. O mato era bem fechado e começaram a surgir várias fendas bem profundas.
Se tivéssemos percorrido essa trilha no escuro, possivelmente alguém cairia em alguma delas, e um resgate ali é bem complicado. No fim, foi uma benção não achar a continuidade da trilha no dia anterior.
Assim prosseguíamos com cuidado. O Tiago estava mais a frente abrindo a trilha, e nós três logo atrás, se desvencilhando das taquarinhas e cuidando as gretas ao mesmo tempo. Começamos a brincar com a situação, encarando a dificuldade da travessia com bom humor, pois quem não é habituado à atividade ou aqueles que não conhecem aquela Serra, não imaginam o que passamos. Então ficávamos ironizando, imaginando os comentários inocentes daqueles que depois só veriam as fotos: que lindo o “passeio” de vocês! Ou então: que “caminhada” linda; faço caminhadas nos finais das tardes, tenho condições de fazer uma dessas? Dá para levar o meu filho de 7 anos? E a listagem de frases continuava. O Marcelo ainda criou a classificação de trilha não recomendada para madames.
Haviam trechos em que o mato estava tão cerrado, que não era mais possível enxergava mais o Tiago, nem mesmo descobrir por onde ele havia passado. Então chamava por ele para identificar o lado que ele estava. Quando ainda a dúvida perpetuava, perguntava:
– Direita ou esquerda?
Em uma parte ele dobrou a esquerda e fui seguindo seu rastro. De repente, deparei com uma “rede” de raízes finas que cobriam uma greta. O rasto dele passava por ali, mas será mesmo que passou por cima daquela greta? A rede talvez aguentasse meu peso, mas e os guris que além de serem mais pesados, estavam de cargueira?
Sentei e em uma pedra e fui passando cuidadosamente até que meu pé tocou uma pedra embaixo da rede de raízes.
Achando que nós estávamos demorando para passar o Tiago incentivava:
– Vamos lá pessoal! É travessia pesada!
E a resposta era uniforme:
– Capaz, nem percebemos…
Ao passo que saímos do vale vimos o Conjunto Marumbi.
Em seguida encontramos a ligação da trilha “por baixo” do Ciririca. Fiquei super feliz, pois subir o Ciririca era um sonho antigo.
Começamos a subir o K2 paranaense e num trecho o Tiago foi verificar o GPS e falou que faltavam cerca de 200 metros para o cume. Então logo chegaria a temível rampa.
Atingimos um ponto em que havia bastante pedra exposta. O Tiago consultou novamente o GPS e olhou pra mim:
– Lu, isso aqui é a rampa!
– Essa barbada aqui?
Respondi surpresa.
O bicho papão estava desmascarado. A tal rampa que tinha lido em vários que era um terror, era na verdade uma barbada. Subi a rampa rindo e em determinadas partes em pé.
Logo chegamos ao cume do Ciririca (1705 metros), e depois seguimos para as placas, onde a vista estava o caderno do cume e a vista era mais bela.
Muitas pessoas fazem a “caveira” do Ciririca, dizem que é muito difícil, que a rampa é muito perigosa, que é o K2 paranaense. Mas não concordo com nada disso. A trilha, além de não ser tão difícil, é muito bonita. A subida da face leste do Ferraria é mais difícil, merecendo o título de K2 paranaense.
Fiz até uma charge sobre trilhas em serras!
Veja nesta foto aérea por onde estávamos andando neste dia.
Começamos a descer o Ciririca no sentido dos Agudos e Colina Verde.
A descidinha era bem lisa, mas bastante divertida. Nada como os arbustos e taquarinhas para dar um apoio. Apesar de bastante lisos, os trechos com corda foram bem tranquilos de descer.
Durante a descida dá para ver o avião do antigo Banco Bamerindus que se chocou na serra em 1989.
Chegamos no Colina Verde perto das 12:00 e o Tiago decidiu atacar os Agudos Lontra (1416 metros), e Cotia (1464 metros). Eu e os outros dois guris decidimos espera-lo, pois o ritmo dele de caminhada era mais rápido e tínhamos pressa de chegar ainda na Garganta 235 até o fim do dia. Marcamos o ponto de encontro para o almoço na água mais próxima.
Eu, o Fábio e o Marcelo seguimos na direção da água e o Tiago rumou para o Agudo Lontra.
Esperamos por ele no ponto combinado por quase uma hora. Enquanto isso, aproveitando a água corrente e limpa, recarregamos os refis de água, passamos água no rosto e ficamos tagarelando.
De repente retorna o Tiago e pergunto como foi de Trilha ao Agudo Lontra.
– Uma …
Ele responde com cara de poucos amigos. Caímos na risada.
– Não tinha trilha. Só mato, espinho e um calor terrível para pouca vista.
Almoçamos ali mesmo e logo continuamos a descer para atingir o rio Forquilha ainda no início da tarde, passando por uma transição entre os campos de altitude e a mata Atlântica.
O rio era muito bonito, com pedras gigantescas tapadas por musgos. Parecia cena de filme.
Logo que começamos a pisar nas pedras inteiriças, eu andava com cautela, pois nas trilhas em leito de arroio daqui da região Central do Rio Grande do Sul, se aprende que não se deve pisar nas pedras inteiras. O basalto, a rocha daqui da região, é liso e quando molha é praticamente impossível ficam em pé nele. Na travessia que estávamos fazendo na Serra do Ibitiraquire, a rocha predominante é o granito, que possui grande aderência.
Ganhando confiança no granito, saltava de pedra em pedra, sempre cuidando para não molhar a bota. Havia mais um dia de travessia e o estado dela não era dos melhores, então não estava muito confiante em deixa-la molhada.
Saindo do rio Forquilha, seguimos uma trilha subindo até a Garganta 235, que fica entre os Morros Tangará e Cotoxós. Agora um pouco mais aberto que aqueles que passamos nos últimos dois dias.
Primeiro descemos mais um pouco, chegando a uma parte em que teríamos que saltar sobre uma fenda que havia no meio do Caminho. Era uma fenda de mais ou menos um metro de largura e para chegar ao outro lado era necessário saltar para uma pedra que estava no outro lado da fenda, em um plano mais baixo em relação ao outro. O detalhe era que a pedra de aterrisagem era inclinada, então teria que acertar o seu ponto mais alto. Os guris pularam primeiro. Eu fiquei duvidando da minha capacidade, com medo de saltar menos que o necessário e acabar caindo na fenda.
Então o Tiago se posicionou na beira da pedra para me segurar caso desse alguma zebra. Saltei e da beira da pedra de onde estava e cheguei a extremidade daquela do outro lado. Estava duvidando da minha capacidade à toa. Minha impulsão vai muito bem, obrigada. O problema é que o Tiago me segurou mesmo estando tudo sob controle. E segurou justamente o braço esquerdo, aquele lesionado. No momento em que coloquei os pés no chão, senti uma dor muito forte no ombro. Por reflexo, me agachei e levei a mão ao ombro esquerdo. Ele saiu do lugar novamente, se deslocando um pouco para frente.
Fiquei curvada esperando que aliviasse a dor e lentamente empurrava o ombro para o lugar. E ele voltou! Que alívio. A dor diminuiu, mas continuou intensa, limitando um pouco os movimentos do braço esquerdo.
Assim começamos a subir para chegar até a Garganta. Eu ia mais para trás, caminhando lentamente e cuidando como me apoiava nas árvores para subir. Acredito que levamos no máximo 20 minutos até a caixa da Garganta 235.
Sentei no tronco em frente à caixa e peguei o caderno, no qual fiz um breve relato de nossa jornada. Havia a assinatura do nosso amigo Sérgio Sampaio. Provavelmente ele tenha passado ali uma hora antes do que nós.
O Tiago e o Fábio foram pra a outra ponta da Garganta para tentar algum sinal de celular, e o Marcelo sentou ao meu lado para também assinar o caderno.
– Já são 17:40 e lá para baixo o mato está bem fechado além de ser bem inclinado. Acho melhor acamparmos aqui. Anunciou o Tiago.
Para mim foi um alívio, pois a dor no meu ombro não deu trégua e descer tentando usar um braço com movimentos limitados seria bem complicados. Como não tinha levado anti-inflamatório, peguei dois comprimidos com o Marcelo, deixando o segundo para tomar antes de dormir.
Começamos a ajeitar outro bivaque. Isso até virou piada! Levamos as barracas para deitar em cima delas. Parecia coisa de quem não sabia armar uma.
Me aconcheguei sentando em cima da barraca, com as costas em uma pedra. Logo preparamos uma panelada de chá para se aquecer antes da janta.
Aquela noite foi longa. O local que acampamos não era muito confortável e por diversas vezes acordei com sons de animais. Um inclusive um chegou bem próximo à minha cabeça. Fiquei imaginando se fosse outra cuíca… Espero que sim.
Dados do 4º dia da travessia:
Distância: 10,45 Km a pé.
Altimetria: 1064 metros de aclive acumulado e 1349 metros de declive acumulado.
Google Earth:
5º DIA: Sábado 23/08/2014.
Não demorei muito para levantar, pois os passarinhos e a claridade não deixavam mais dormir. Tomamos nosso café e guardamos os equipamentos na mochila mais rapidamente do que nos dias anteriores. Tínhamos que fazer render aquele sábado para chegar a tempo para encontrar o nosso resgate.
Descemos a Garganta 235 e logo chegamos ao rio Mãe Catira.
E por trilha, chegamos à falha geográfica do Diabásio. Este, por sua vez, um verdadeiro espetáculo da natureza, consistindo em um paredão de rocha que se estende por dezenas de quilômetros e coberto por lindo musgo verde. Maravilhado, o Tiago tirou várias fotos. Enquanto isso, segui um pouco à frente para vistoriar aquele incrível local.
Logo à frente vinham dois rapazes vindo do sentido da Graciosa. Quando chegaram mais perto, pude reconhecer Élcio Douglas e Jurandir Constantino, duas feras do montanhismo, que realizaram a grande travessia Alpha Crucis (a mais difícil do Brasil). Foi uma grande surpresa encontrá-los ali, na verdade, foi uma agradável surpresa para todos.
O nosso grupo ficou conversando com eles por uns bons minutos, sobre a nossa travessia, sobre aquele lugar maravilhoso no qual estávamos, Alpha Crucis, Farinha Seca e entre outros. O Élcio nos falou que também passou pelo Sérgio, que estava a uns 20 minutos a frente de nós. E nos informou que faltavam apenas umas três horas para chegar até a Graciosa. Ficamos super felizes com a notícia, pois era um pouco mais de 10:00 da manhã e estávamos com muita sobra de tempo até o nosso resgate.
Tiramos fotos com nossos amigos para registrar o momento e em seguida nos despedimos deles que estavam indo abrir a trilha para o Morro Tangará. Espero, em breve, poder prestigiar a trilha nova.
Em pouco tempo chegamos ao topo da cachoeira Mãe Catira e descemos pela sua esquerda.
Essa cachoeira é muito bonita, possuindo cerca de 25 metros. O Tiago se posicionou na sua frente para tirar fotos. Eu pedi uma foto minha olhando para ela. Fui escolhendo cuidadosamente as pedras que ia pisar para chegar na posição certa, pois algumas ali estavam um sabão.
Logo apareceu o Marcelo, que também pediu uma foto. Na pressa, acabou escorregando em uma pedra. A risada foi geral.
Na sequência chegou o Fábio, que também queria foto em frente à cachoeira. Ele conseguiu cair em alto estilo na mesma pedra em que o Marcelo escorregou.
Mais adiante da cachoeira, haviam poços muito bons para banho (dica do Élcio) e como tínhamos tempo de sobra até o resgate, resolvemos curtir um pouco o local e tomar um banho.
Tirei a bota e coloquei o pé na água. Ela estava muito gelada! No relógio do Tiago a temperatura da água era de 12 graus! Apesar dos quatro dias sem banho, não me encorajava mergulhar com roupa e tudo naquela água gelada. O jeito foi ir aos poucos. Almoçamos ali mesmo.
Depois de quase duas horas descansando retomamos a trilha rumo ao final de nossa travessia. Faltavam somente 9 Km até o Marco 22 da Estrada da Graciosa. E a trilha era bem marcada e bem fácil de caminhar. Além disso, passava por uma mata atlântica nativa muito linda. Haviam xaxins gigantescos, arvores de troncos grossos, cogumelos de proporções anormais. Assim enchemos nossos olhos com a belíssima mata no trecho final de nossa travessia.
Chegamos ao Marco 22 da Graciosa por volta das 15:00. Se não tivéssemos feito aquela longa pausa no Mãe Catira, teríamos terminado em torno das 13:00.
A estrada da Graciosa estava bem movimentada e cada carro que cruzava por nós dava uma buzinadinha ou as pessoas gritavam para nós.
Assim que chegamos no primeiro Recando, local combinado para o resgate enviamos uma mensagem para a Sandra avisando que havíamos concluído a travessia. Mandei uma mensagem para a minha mãe ir preparando o rango.
Enquanto esperávamos nossa amiga nos resgatar, eu e o Marcelo compramos água de coco. Assim que cada um terminou, resolvemos aproveitar a poupa do fruto, enfiando o canivete pelo buraco do coco e puxando as lascas com as mãos. Umas senhoras turistas que estavam na fila do banheiro nos assistiam apavoradas a nossa fome.
E assim terminou nossa jornada. Pegamos 5 dias de tempo maravilhoso, coisa rara de acontecer nessa região onde chove em 270 dias por ano.
A dificuldade da travessia nos fez crescer, tanto na pratica do montanhismo, tal qual como pessoas. Uma experiência ímpar. Mesmo tendo sido uma travessia bem difícil, na minha opinião foi a melhor que já fiz!
Esta foi a nossa homenagem do Clube Trekking Santa Maria RS para a Semana da Montanha do Paraná 2014. Uma bela travessia e sem dúvida uma das mais difíceis do país.
Agradecemos especialmente as pessoas que tornaram essa travessia uma experiência em sucesso:
A Sandra Elize (Mulheres na Montanha), pela ótima logística que nos proporcionou para que tivéssemos êxito.
Elcio Douglas, pelos roteiros de trekking, paciência em tirar todas as dúvidas e pela abertura da trilha do Colina Verde até o Marco 22 junto com o Mildo Junior e Jurandir Constantino.
Getulio Rainer Vogetta (Associação Montanhistas de Cristo), sempre muitíssimo prestativo seja pela ajuda com todo roteiro e as dezenas de dicas e informações sobre a travessia.
Também Geraldo Protzek e ao Natan Fabricio Loureiro Lima (Nas Nuvens Montanhismo) pela disposição em ajudar e retirar dúvidas.
Dados do 5º dia da travessia:
Distância: 10,2 Km a pé.
Altimetria: 694 metros de aclive acumulado e 936 metros de declive acumulado.
Google Earth:
Dados finais da Travessia Bairro Alto x Marco 22 PR:
Distância total: 48,30 Km a pé.
Aclive acumulado total: 6566 metros
Declive acumulado total: 5888 metros
Fotos e dados: Tiago de Pellegrini Korb