Cerro Aconcágua 6962 metros – Rota 360°

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Na manhã do dia 27 de janeiro deixamos o Refúgio Laguna Blanca, base do Cerro Mercedário, e partimos para Barreal.

Neste dia eu estava “desesperada” atrás de sinal de wi-fi. Mas não era pelo fato de dar as boas notícias do cume para os amigos ou para postar as fotos em redes sociais. Havia feito o ENEM 2018, forma de ingresso para a Universidade Federal de Santa Maria. Durante todo o período do processo de inscrição e classificação do Sisu, eu estava na montanha. E naquele dia 27, já deveria ter saído a classificação. Antes de sair para viajar, passei todas as instruções para minha mãe e deixei ela de de “cobaia” para fazer todo esse procedimento e acompanhamento do Sisu. Deixei também quatro procurações com cópia da documentação necessária para uma possível matrícula para quatro pessoas diferentes. 

A primeira parada em Barreal foi em um posto de combustível, onde tem uma cafeteria e restaurante com internet. Cada um pediu uma xícara de café expresso e a senha do Wi-fi. Meu celular travou com tantas atualizações e mensagens no Whatsapp. Até que, enfim, consegui visualizar os prints que minha mãe havia enviado da página do processo de classificação do Sisu. Até aquele momento, surpreendentemente, estava em primeiro lugar em Educação Física Bacharelado da Universidade Federal de Santa Maria. Fiquei sabendo que o listão havia sido prorrogado para o dia 28/01. 

Depois do café e das trocas de notícias, fomos a um supermercado onde havia uma carniceria. Nosso maior desejo era de fazer um assado de bife de chorizo, com o qual sonhamos durante todos aqueles dias no Mercedário. Pedimos “modestos” 3 Kg de bife de chorizo, mais 1 Kg de uma linguiça artesanal (reparei que várias pessoas que estavam na minha frente na fila pediam ela, então deduzi que era muito boa) e alguns pimentões (pimentão da Argentina são “outros quinhentos”). Levamos nosso pequeno rancho ao camping municipal de Barreal, que estava lotado de famílias curtindo o domingo fazendo um belo assado. Escolhemos um canto com uma churrasqueira vaga e nos instalamos ali. Apuramos para fazer o fogo, pois estávamos famintos após vários dias na montanha. O Ediceu Pereira, quem dizia que só comia carne bem passada e em pouca quantia, devorou ferozmente aquele bife de chorizo absurdamente macio e mal passado. Era a oitava maravilha do mundo.

Como estávamos adiantados no cronograma, e queríamos pegar a temporada baixa do Aconcágua, que começa dia 1º de fevereiro, para pagar menos caro no permisso (mais barato não combina aqui), ficamos três dias naquele camping.

Duas vezes ao dia, visitávamos o posto para tomar o café expresso e conectar o wi-fi. E então, dia 28 tive a feliz notícia que passei de fato em Educação Física Bacharelado da Universidade Federal de Santa Maria. Mais motivos para comemorar.

Na nossa última noite no camping, fizemos outro assado. Dessa vez não havia mais bifes de chorizo na carniceria, então perguntei ao açougueiro qual outro corte ele recomendaria para um bom assado. Ele nos indicou “paleta”. De cara pensei na carne brasileira. Mesmo com desconfiança, acatei a indicação. E de fato uma carne maravilhosa para ser assada, que nem lembrava a que tem aqui no Brasil.

Dia 30 pela manhã partimos para Mendoza, onde chegamos por volta das 13 horas. Havíamos alugado um apartamento pelo Airbnb para facilitar a organização dos equipamentos para o Aconcágua. Naquele mesmo dia, chegou o André, de Florianópolis, amigo do Ediceu de outras montanhas. 

Dia 31 “maratonamos” atrás dos permisos. Ainda bem que acordamos bem cedo e estávamos de carro. Fomos a pé até um endereço, próximo ao apartamento, que estava na página do Parque Provincial do Aconcágua. Chegando lá, fomos informados  que aquele local era para os guias argentinos, e que o nosso permiso deveria ser realizado em um escritório localizado dentro do Parque San Martin. Longe dalí. Voltamos a pé até o apartamento, pegamos o carro e fomos até a praça. Encaminhamos o permiso, mas o André e o Ediceu queriam dividir uma mula. Então para isso, precisavam ir até uma agência no centro da cidade. Fomos até o escritório, que ainda não havia aberto. Ficamos esperando por uma meia hora a secretária chegar despreocupadamente bem atrasada. “Mofamos” por mais de hora dentro do escritório da agência e derretendo de calor “graças” ao trâmite burocrático e inexplicavelmente demorado. Mas foi graças à mula dos guris que eu (Luciana Moro) e o Tiago Korb também ganhamos desconto de US$ 100,00 cada em nos nossos permisos (mesmo sem usar o serviço). Após isso, saímos em procura de uma espécie de lotérica em específico para pagar as guias dos permisos. Concluindo a maratona, voltamos ao escritório localizado na Praça San Martin para, enfim, tê-los em nossas mãos no início da tarde. Querido leitor, caso pretenda ir ao Aconcágua já sabe: se organize para fazer o tal permiso com bastante antecedência e tenha um dia para isso. 

Acordamos às 3 horas da manhã no dia 1º de fevereiro e às 4 horas já estávamos saindo do apartamento. Deixamos tudo organizado na véspera para não correr o risco de esquecer algum item importante. O André pegou um transfer até Punta de Vacas, pois a nossa Tracker acomodava três pessoas mais o equipamento com muito sufoco.

Dormi o trajeto todo e quando acordei, a primeira coisa que vi foi uma placa onde estava escrito “Parque Provincial Aconcágua”. Chegamos em Punta de Vacas. Eu e o Ediceu descemos com as mochilas e ficamos esperando o Tiago, que foi deixar o carro na portaria Horcones (para depois voltar de carona), onde terminaríamos a rota 360. 

Eram 8:30 e nada de o André aparecer. Estávamos preocupados. O Ediceu mais ainda, pois a mula estaria lá às 9 horas para eles despacharem o equipamento. O Tiago voltou a Punta de Vacas de carona com um casal de chilenos gente fina, ainda antes das 9 horas. E ainda nem sinal do André. O guarda-parque se mobilizou a ajudar a encontrá-lo e estava tentando ligar para o taxista que fez o transfer dele. Depois de muitas ligações e suposições, descobriram que o André estava do outro lado da rodovia (dormindo). O Ediceu a atravessou bufando de furioso.

Enfim, às 9:45 começamos de fato a rota 360º do Aconcágua. Eu e o Tiago estávamos carregando tudo, e cada mochila pesando mais de 30 Kg (sim, inclusive a minha). Por conta disso, estávamos mais lentos. Haviam vários outros grupos também começando a rota e em sua maioria europeus. Com exceção de um cara da Estônia, um montanhista experiente que  já havia escalado três montanhas acima dos 7 mil metros, que também estava porteando todo o seu equipamento, todos os demais estavam utilizavam serviço de mulas para carregar os equipamentos. 

O calor intenso, as pouquíssimas horas de sono e o peso da mochila se somaram para azedar o humor do Tiago, que resmungava constantemente. Depois de 13,357 Km abaixo de sol escaldante, chegamos ao Acampamento Pampas de Las Leñas (2860 m). O André e o Ediceu nos aguardavam. Eles haviam reservado uma pirca para a nossa barraca ao lado de onde haviam montado a barraca quatro estações que alugaram em Mendoza. 

Montado o acampamento, tratamos de nos hidratar e de comer bem. Com isso, o humor do Tiago deu uma bela melhorada. Era preciso estar bem e recuperado, pois o dia seguinte prometia ser tão pesado quanto o primeiro.

Ali em Pampas de Las Leñas fiquei observando a paisagem e em especial a movimentação das outras pessoas. Era gritante a diferença do Aconcágua para as outras montanhas que escalei. Com exceção do Plata, elas eram mais selvagens e não haviam todo aquele povo. O Aconcágua é uma explosão de pessoas, agências e mulas.  Durante minha observação, fiquei procurando algum local protegido dos olhares daquele povo onde pudesse servir de “banheiro”. Mas logo descobri que umas cabines metálicas eram os banheiros. Sim! Banheiros estruturados na montanha, com vaso sanitário, descarga e até mesmo um tubo de “Bom Ar”  ao dispor. 

Durante a madrugada, acordamos com a chuva batendo no sobreteto da barraca. Para mim parecia surreal chover no Aconcágua. Somando ao som da chuva, estava o da correria das pessoas para recolher seu pertences que haviam deixado exposto ao relento. 

Acordamos às 7 horas e já havia pessoas desmontando as barracas. Algumas já partindo. Eu e o Tiago começamos a andar às 8:45.

O céu estava parcialmente encoberto e não fez o mesmo calor terrível do dia anterior, o que ajudou no rendimento. Quando paramos para almoçar ao meio dia, já havíamos percorrido ⅔ do trajeto daquele dia. Logo que retomamos a caminhada, começou a chover. Paramos novamente, protegemos a mochila, e as botas duplas que levávamos no lado de fora para não molhar, colocamos vestuários e eletrônicos em sacos estanques e pegamos os anoraques. Voltamos a andar e a chuva parou e o céu limpou. Fiquei indignada, pensando que só foi para perder tempo! Mas quase chegando no acampamento Casa de Piedra (3240 m) a chuva voltou a cair, mas com mais intensidade. E que bom que o equipamento já estava protegido. 

Após percorridos os 15 Km, chegamos em Casa de Piedra. Apesar dos 30 Kg de mochila, éramos um dos primeiros a chegar ali. Entramos na casa do guarda-parque e pedimos para aguardar ali até que a chuva aliviasse para que pudéssemos montar a barraca. Apresentamos nossos permisos e ficamos um bom tempo conversando com eles. Assim que a chuva cessou, corremos para escolher o espaço para montar acampamento. Só foi o tempo de terminar de montá-la, quando voltou a chover. E continuou esse chove e pára no resto da tarde e à noite. 

Sentados em nossas cadeiras dobráveis dentro da barraca Mountain 25 tomando chá  e ficamos acompanhando a movimentação na parte externa pela porta e ”babando” com o cheiro do churrasco que os gaúchos argentinos estavam preparando para os clientes de uma das agências.

Combinamos em levantar novamente às 7 horas no dia seguinte, mas meu sono foi interrompido antes das 5 horas da manhã por uma intensa movimentação e conversação em volta da barraca. Se tratava de grupo desmontando acampamento abaixo de chuva para partir. E não tardou muito para que os outros grupos começassem a fazer o mesmo. Parecia que todos estavam desesperados fugindo do apocalipse.

O Tiago acordou no nosso horário combinado e ainda chovia. A movimentação externa continuou. O Ediceu e o André partiram com os demais, pois tinham até um determinado horário para entregar os equipamentos para os arrieiros. E eu e o Tiago ficamos esperando a chuva passar e ficamos somente nós dois em Casa de Piedra. 

Começamos a desmontar a barraca assim que a chuva cessou. Nisso apareceu um arrieiro que parecia bravo e nos dizia alguma coisa que não conseguimos compreender. Ele sumiu e depois reapareceu com a guarda-parque, quem traduziu em espanhol o espanhol do gaúcho. Ele estava nos apurando para empacotar a nossa barraca para colocá-la logo na mula. Mas explicamos que estávamos carregando tudo sem o auxílio das mulas, com o Tiago dando risada finalizando com a seguinte frase: “La mula soy yo”

Deixamos o acampamento Casa de Piedra passado das 9 horas rumo a Plaza Argentina (4.200 m). Saímos calçando crocs e com as bota penduradas na mochila, pois havia o rio para atravessar. E como a água estava bem gelada. No decorrer da trilha, houve mais umas três travessias de rio. Provavelmente o pessoal saiu bem cedo fazer as passagens quando as águas estivessem mais baixas, pois, no decorrer do dia, esses rios de geleira ganham volume e correnteza maiores. Como eu e o Tiago somos acostumados a andar em rios em nossos trekkings, isso não era problema para nós. O único porém era a função de tirar as botas e colocá-las de volta. 

Apesar da altimetria de mil metros para aquele dia, ela se dilui bem ao longo dos 12 Km. Esse trecho entre Casa de PiedraPlaza Argentina, para mim, é um dos mais bonitos de toda a rota 360, com trechos da trilha que contornam desfiladeiros e de um ponto em diante há uma vista espetacular para o Aconcágua. 

Chegamos em Plaza Argentina (4.200 m)  por volta das 16 horas. Primeiro montamos o acampamento para depois apresentar os permisos, entregar os sacos de lixo cheios que recebemos na portaria de Punta de Vacas e em troca recebemos outro saco numerado de “resíduos”. Ao final, em Plaza de Mulas, este deveria ser entregue com conteúdo (conteúdo = nº 2). Pelas regras do parque,  caso esse caso seja extraviado ou entregue vazio, a pessoa deve pagar uma salgada multa.

A caminho da casa do guarda-parque encontramos os guris. Nós quatro pretendíamos fazer tão logo o exame médico obrigatório, para ganhar o aval para subir até os acampamentos mais altos. Esse exame também é exigido em Plaza de Mulas para quem faz a rota normal. O guarda parque informou que o exame só seria possível no dia seguinte, pois já havia terminado o horário do médico plantonista, e o outro só chegaria por helicóptero na manhã seguinte. 

Perto da casa do guarda-parque, havia uma placa com a previsão do tempo para os próximos dias. No nosso planejamento, o dia de cume estava previsto para ser no dia 07 de fevereiro, mas a previsão do tempo para esse dia era de muito vento. A melhor janela era a do dia 06. Então era necessário agilizar a liberação médica. 

Acordamos às 7 horas do dia seguinte, fizemos o nosso desjejum e desmontamos o acampamento para deixar tudo pronto para começar a subir logo depois do exame médico. Sem o aval médico, ninguém poderia subir. E às 8:20 nós quatro estávamos novamente à porta do da casa do guarda-parque para buscar os permisos. Eram 8:30 e nada do helicóptero com o outro médico. O médico que estava presente ali em Plaza Argentina não queria nos atender, justificando não era o seu turno. Ficamos extremamente desapontados. Passou-se mais meia hora e nem sinal de helicóptero algum. Ele estava muito atrasado. Com muita insistência, o André conseguiu convencer esse médico em nos atender mesmo havendo terminado seu turno. Ufa! 

Nós estávamos subindo direto com toda carga e sem porteios, pois havíamos feito a aclimatação em outra montanha, que foi o Cerro Mercedario (6720 m). Como todos estavam muito bem de saúde, o médico nos liberou, mas pediu para que, nos acampamentos superiores, informássemos por rádio a nossa situação. Mesmo estando aclimatado, isso não isenta do risco de desenvolver quadros de edema pulmonar ou cerebral decorrente de grandes esforços acima de 5.400 metros. 

Começamos a subir para o Campo 3 (5.400 m) passado das 10 horas da manhã e havia 7 Km com 1.200 metros de desnível para vencer naquele dia. Desde a portaria de Punta de Vacas até Plaza Argentina não há dificuldades técnicas do trekking. As distâncias entre um acampamento e outro são longas, porém a altimetria e a inclinação são suaves. Mas de Plaza Argentina em diante, o terreno fica mais íngreme e com muitos acarreos, além da altitude mais elevada. 

Passamos ao campo 1 (5.000 metros) às 14 horas, depois seguimos alguns quilômetros para para vencer os últimos 400 metros de um contínuo acarreo, chegando no Campo 3 (Acampamento Guanacos) por volta das 17 horas. Montamos nossa barraca Mountain 25 em uma pirca bem protegida e escolhemos outra onde deixamos alguns equipamentos dentro para reservar para os guris que ainda não haviam chegado. Foi um dia bem “puxado”, e tão logo montado o acampamento, nos hidratamos bem e nos alimentamos

A vista do Acampamento Guanacos é deslumbrante. Dalí se tem vista para outras montanhas como o Cerro Mercedario, Mesa, Ramada e Dos Hermanos. E para fechar o dia com chave de ouro, como recompensa pelo nosso esforço, o pôr-do-sol coloriu o céu em tons amarelos e laranjas. Como a temperatura havia caído bastante, eu admirava esse show da porta da barraca. Mas o  Tiago não resistiu e saiu para fora para registrar o espetáculo com a câmera fotográfica. 

No dia seguinte acordamos um pouco mais tarde. Ainda fazia frio e o sol demorou para iluminar o acampamento. Eram 10:30 da manhã quando começamos a subir para o acampamento Cólera (5.970 m), que faz a intersecção com a rota vindo de Punta de Vacas e a normal. Até lá eram apenas 2 Km e 500 metros de desnível. 

Chegando em Acampamento Cólera, escolhemos o local mais protegido do vento para armar as barracas.  Tivemos todo o cuidado para montá-las para que o sobreteto e o dormitório não saíssem voando montanha abaixo. Esse mesmo cuidado também tivemos com o saquinho do “nº 2”. Perdê-lo significava multa. 

Quando o Ediceu e o André chegaram, avisamos os guarda-parques de Plaza Argentina via rádio que todos nós haviam chegado em Cólera e que estavam bem. Perguntamos ainda o prognóstico para o dia 6, e foi informado que haveria pouquíssimo vento durante o dia. Porém, tudo mudaria a partir do dia 7. Então a melhor janela para o cume era no dia seguinte. E nós quatro acordamos de aproveitar aquela janela.

Como de costume, já deixamos separados os equipamentos e vestuário necessários para o dia do cume. E durante o resto do dia, eu e o Tiago tomamos várias xícaras de chá para se hidratar e procuramos nos alimentar bem. Um dos chás que levamos era sabor limão, bom, nos acampamentos mais baixos era sabor limão. A 5970 metros de altitude sentimos somente a acidez. Então o misturamos com suco. 

Acordamos às 3 horas do dia 6 de fevereiro e começamos nossos preparativos. Não havia vento algum e o céu estava cravejado de estrelas. O tempo estava perfeito! 

Nos vestimos para a guerra e às 5 horas começamos o ataque ao cume. Nós e o acampamento Cólera inteiro estava subindo para atacar o cume. Logo no início da subida, ficamos presos atrás de uma fileira de pessoas das agências, que estavam em um ritmo bem vagaroso. Nisso, escutamos uma tosse forte e constante vindo da fila de clientes de uma das agências. Na verdade, ouvimos essa mesma tosse o dia inteiro desde que havíamos chegado em Cólera. E isso era um forte indício de que essa pessoa estava desenvolvendo um quadro de edema pulmonar. Ao ultrapassar a fileira, paramos em frente ao guia deles e alertamos a ele a respeito do estado de saúde de seu cliente, mas ele não pareceu dar muita importância ou ter conhecimento do que se tratava. 

A noite começou a se dissipar quando estávamos próximos à Independência (6.400 m). E sob as primeiras luzes do dia, pude enxergar outras três pessoas subindo à nossa frente. Em um momento, eles pararam em meio à trilha e um deles foi passado para o meio do grupo. Logo percebi que essa pessoa que ficou entre os três oscilava muito para frente e para trás e parecia ter muita dificuldade de andar. A dificuldade de marcha é uma das características de um quadro de edema cerebral. 

Chegamos em Independência, onde tem o resto de uma estrutura que um dia fora um refúgio, às 8 horas. Eu, o Ediceu e o Tiago paramos ali para tomar chá para se aquecer, fazer um lanche, guardar as lanternas e pegar os óculos de sol. O André estava mais atrás, pois ele estava sem bastão de caminhada, o que dificultava a progressão nos trechos de acarreos

Ali também estava aquele grupo que avistei subindo. Um deles continuou pela travessia, enquanto o outro desceu com a mulher que estava com a marcha cambaleante. Quanto a nós, estávamos bem e prosseguimos pela travessia, onde há vários acarreos. Após, a trilha segue por um bom trecho sombreado e, consequentemente, mais gelado (-18 graus neste local). Passamos por outro grupo composto de três homens. Um deles era um argentino de Mendoza e os outros dois acho que eram alemães. Estavam sentados à beira da trilha descansando e tentando se aquecer. Nos cumprimentamos e os motivei eles em meu inglês enferrujado: “Vamos, que falta pouco!”. Durante a ascensão, passamos várias outras pessoas que também estavam atacando o cume, e muitas delas fazendo isso a partir do Acampamento Berlim (5.800 m).

E logo mais à frente estava a “famosa” canaleta, onde tinha um acarreo do capeta misturado com gelo. Dia de cume é sempre dureza, o importante é conhecer o próprio corpo e ter foco. Com paciência, íamos vencendo os últimos metros. E sempre motivando um ao outro. 

Três anos antes, o Ediceu fez o Aconcágua. Foi a sua primeira alta montanha. Porém, ao chegar na canaleta, não se sentiu bem e desceu. Depois de anos, ele se preparou, estudou, pegou mais experiência e agora estava novamente ali. Mas dessa vez foi diferente. 

Chegamos no louvável cume do Gigante das Américas às 14:30. Como estava à frente de nosso grupo, enxerguei a cruz do cume e anunciei “Cume!”. Logo foram chegando o Tiago, o Ediceu, os dois alemães e o argentino que encontramos logo depois da Travessia.  Nunca vi tanto homem chorando de uma vez só (eu não chorei e nem o Tiago). Era a conquista do cume do Cerro Aconcágua, a montanha mais alta das Américas e a mais alta fora da Cordilheira do Himalaia. O Ediceu, em especial, se emocionou bastante. Aquela conquista do cume tinha um significado especial para ele, que, obviamente, não sou capaz de descrevê-lo em meu relato. Mas creio que o leitor conseguirá compreender, tendo em vista a história pretérita de nosso amigo em relação a essa montanha. 

Ficamos no cume por  mais de duas horas. Aproveitamos o dia perfeito sem vento e com temperatura variando de -5ºC  a 5ºC – para admirar a paisagem, tirar fotos e festejar a conquista com cada um que chegasse ali no cume. Estávamos esperando também o André. Quando o enxergamos próximo dos últimos metros do cume, corremos para a beirada e começamos a gritar palavras motivacionais para o amigo. Quanto ele, enfim, surgiu no cume, estava com uma expressão de “Não acredito! Consegui!” E ficou um tempo parado na entrada apenas admirando, enquanto nós vibrávamos feito malucos. 

Começamos a descer somente às 16:30, quando o povo da agência que ultrapassamos ainda de madrugada começou a chegar no cume. E cada um expressava extrema alegria pela conquista. De fato isso foi uma das coisas mais lindas que vi no Aconcágua. 

Passando novamente pela Canaleta, ainda havia mais gente subindo em direção ao cume. O André, que passou perrengue para subir sem os bastões, agora na descida cheia de acarreos foi muito pior. Então, como ele estava em um ritmo mais lento, o Ediceu quis acompanhá-lo, pois também estava com um GPS Garmin e liberou para que eu e o Tiago fossemos descendo na frente. 

Chegamos de volta em Cólera às 20 horas. O Acampamento estava quieto. Deveríamos ter sido um dos primeiros a chegar. Só ouvimos aquela mesma tosse de sempre vindo de alguma barraca. Deduzimos que algum guia daquela agência desceu com o cliente enfermo após o nosso alerta. Não tardou muito para aparecer mais uma turma descendo para Cólera. Reconhecemos os montanhistas que estavam no cume conosco. 

Como o sol já estava se pondo, o Tiago contatou Nido de Condores pelo rádio VHF, onde há uma patrulha de resgate, para avisar que havíamos realizado o cume e que voltamos ao Acampamento e estávamos bem, mas que ainda haviam muitas pessoas que ainda não havia descido. O contato de Nido de Condores pediu para que avisássemos assim que todos voltassem. Estávamos preocupados, especialmente com o Ediceu e com o André. Qualquer acidente na montanha poderia limitar a locomoção da pessoa e obrigá-la a pernoitar ao relento a uma temperatura de -12º ou até menos, o que poderia ser fatal. O Tiago sinalizou o acampamento colocando a lanterna do lado de fora da barraca no módulo strobo, para que quem estivesse descendo pudesse localizá-lo com facilidade. Aos poucos o povo foi voltando e preenchendo as barracas vazias em Cólera. Em um certo momento, enxergamos duas lanterninhas pareadas vindo de Independência e algumas outras mais atrás. Mas aquelas duas luzes eram os guris. Eles chegaram às 22 horas cansados, mas bem. 

No dia após o cume, não pudemos estender muito a preguiça, uma vez que a previsão do tempo para a montanha não era muito boa. Então, logo após o meio-dia, começamos a descer a montanha pela rota normal até Plaza de Mulas (4.300 m). 

A rota normal é extremamente povoada, muito mais que a de Punta de Vacas, e a predominância era a de gringos. Mas durante  a descida tivemos a agradável surpresa de encontrar um brasileiro que estava escalando a montanha em solo. Conversamos brevemente com ele e desejamos-lhe boa sorte e seguimos nosso rumo. 

Logo depois do Acampamento Canadá (5.100 m) já era possível visualizar uma pequena cidade: “Plaza de Mulas”, que é o segundo maior acampamento base do mundo, perdendo apenas para o do Everest. E em seguida já estávamos circulando pelas suas “ruas” movimentadas a procura de um local para acampar onde não fosse “território” de alguma agência. Nós quatro montamos nossas barracas à beira de uma pequena laguna, e em seguida nos dirigimos à casa do guarda parque para apresentar para apresentar nossos permisos, para dar baixa na entrada do parque e entregar o sacolinha do nº2.  

Nosso atendimento foi relativamente demorado, pois havia muitas pessoas chegando em Plaza de Mulas. Mas não estávamos com pressa. Eu era a pessoa mais tranquila em entregar o saquinho do nº 2.  Felizmente meu intestino funciona muito bem. Os guris disputavam o conteúdo do meu pacote para não receber a salgada multa, e Ediceu era o mais desesperado. Ele havia usado um medicamento para não precisar ir ao banheiro durante o dia do cume, e o efeito do medicamento perdurou por mais de um dia. Arranjamos uma solução e fizemos uma distribuição. Todos “se salvaram” da multa.

Por fim, o guarda parque devolveu nosso ticket do permiso com o carimbo de cume. Aproveitamos o tempo livre para circular por Plaza de Mulas. E eu quis conhecer a galeria de artes mais alta do mundo, com obras do artista Miguel Doura. Para quem deseja escalar o Aconcágua, recomendo visitá-la. De fato ele é um grande artista, e a maioria dos trabalhos são em giz pastel oleoso, envolvendo temáticas de montanha e até mesmo nus. Muitos de seus trabalhos  estavam à venda. Pensei em comprar um cartão, que era o que cabia na mochila e no meu “bol$o”, mas tudo era cobrado em dólar (praticamente tudo em Plaza de Mulas é cobrado em dólar) e nós só tínhamos poucos pesos argentinos.

Nessas andanças eu quase errei a nossa barraca. Como referi anteriormente, Plaza de Mulas é uma mini cidade, tomada por grandes estruturas de grandes agências que ficam montadas ali a temporada inteira, como barracas refeitórios, barracas dormitórios com beliches, banho quente (a US$ 35,00!), serviço de massagem (a US$ 40,00!), sanitários, Wi-fi e muitos outros serviços. Resumindo: uma estrutura urbana na montanha. Havia também outras tantas barracas Mountain 25 montadas, o que era bem fácil de confundir qual que era a nossa.  Todo esse super povoamento e superestruturas da montanha nos causou estranheza. Até aquele momento, as outras montanhas que escalamos nos Andes eram mais selvagens, sem estruturas de urbanas e com pouquíssimas pessoas. 

Depois do passeio, eu e o Tiago retornamos para nossa barraca, onde tomamos chá, que a 4.300 m já era possível sentir o sabor novamente, e saboreamos o que restava do nosso lanchinho de montanha sonhando com um bife de chorizo. Para atiçar mais ainda nossa fome crônica, o cheirinho de comida fresca preparada pelas barracas refeitório vizinhas invadia a nossa. 

Eram 8 horas quando acordamos no dia seguinte ao som da movimentação na vizinhança. O sol ainda não banhava o vale. A rota normal do Aconcágua é mais sombreada que a de Punta de Vacas. Abrimos a porta da barraca, e o Ediceu e o André estavam terminando de desmontar o seu acampamento. Eles decidiram descer a montanha ainda naquele dia até a Portaria Horcones e tinham pela frente 25 Km. Nos doaram alguma comida e o “maravilhoso café Cabrales”, partiram em breve. 

Meus planos e do Tiago era o de acampar em Confluência (3.400 m). Não tínhamos pressa e queríamos aproveitar bem a montanha. Começamos a descer às 11:30. O trajeto até Confluência é bastante monótono e desprovido de muita beleza. Na verdade, a rota normal é bastante sem graça em comparação com a face leste do Aconcágua (Rota 360), e aos outros 6 mil que escalamos.  

Durante a tarde, o tempo começou a ficar feio. Rajadas de vento lançavam terra contra nós, e a parte mais alta da montanha estava tomada por nuvens escuras. Chegamos em Confluência (3.600 m) e montamos rapidamente nossa barraca, temendo que começasse em breve uma chuva ou até mesmo nevasca. Mas nada disso aconteceu.

Em Confluência, além de pessoas que estavam ali para escalar a montanha, também havia aquelas que estavam fazendo trekking curto até ali ou até Plaza de Mulas e corredores de montanha.

Naquela madrugada sonhei com um evento de corrida de montanha, que descobri que era real quando acordei. A prova era apoiada por uma grande agência de montanhismo da Argentina e ela havia começado bem cedo. 

Enquanto eu e o Tiago tomávamos nosso café, discutimos um dilema: fazer o trekking até Plaza Francia, onde tem um mirante da face Sul do Aconcágua, ou descer a montanha? Resolvemos descer, era o dia do meu aniversário de 34 anos e desejamos comemorar a data mais a conquista do cume com um belo assado de bife de chorizo. Além do mais, nossa comida estava na “rapa” e não queríamos ficar mais um dia naquela zoeira do Confluência. 

A descida era uma verdadeira bagunça de pessoas correndo, mulas passando, trekkers e grupos começando a ascensão. Em menos de duas horas chegamos na portaria Horcones, que leva esse nome em decorrência do rio Horcones. Ali havia mais uma multidão de pessoas passeando nos arredores da portaria, visitando a laguna Horcones. Havia até mesmo excursão escolar. De repente, um senhor que estava passeando com sua neta veio em nossa direção. Ele perguntou fez algumas perguntas de como era lá em cima e queria saber se fizemos o cume. O Tiago pegou a câmera e mostrou os nossos registros fotográficos. Eles ficaram maravilhados e depois pediram para  tirar uma foto conosco, com a Sentinela de Pedra ilustrando o fundo. 

Chegamos no estacionamento, onde trocamos de roupa em um banheiro químico para ficar mais apresentáveis em Uspallata, onde pretendíamos acampar. Em seguida, fizemos nosso check out no Centro de Visitantes do Parque Provincial do Aconcágua. Ao mesmo tempo estava decepcionada por conta da urbanização da montanha, mas ao mesmo tempo feliz pelo feito. Afinal, foi feita por méritos próprios. Nós mesmos montamos todo o planejamento, carregamos tudo, montamos nossa barraca e comemos nossa gororoba de cada dia. 

Depois de 53 Km, chegamos em Uspallata no horário da séstia. O mercado estava fechado e só abriria às 17 horas. Então, decidimos chegar primeiro no Camping Municipal, que estava super lotado. Estava havendo um festival de rodeio e à noite haveria shows. Preferimos fugir da muvuca e rodas mais 100 Km até a nossa queridissima Barreal. 

Em Barreal compramos mais 1,5 Kg de bife de Chorizo e 1,5 Kg de Paleta para o merecidíssmo assado comemorativo (não sobrou nada).
Ficamos nesse camping por mais dois dias até partirmos para Mendoza, onde encontramos os clientes para fazer o Nevado San Francisco e Ojos del Salado na Puna do Atacama.

Clique aqui para saber mais sobre a nossa expedição comercial ao Cerro Aconcágua.

O relato de nossa temporada andina 2019 continuará na terceira e última parte.
Leia a primeira parte clicando aqui.

Autora: Luciana Moro
Fotos: Tiago Korb

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